As amigas brasileiras do Homem-Formiga

Junho chegou! Para muitos, a melhor época do ano. Impossível não associar aos festejos de São João, tão tradicionais Brasil adentro, repletos de danças, jogos e comidas típicas. Tem canjica, paçoca, curau, bolo de milho… Uma das minhas iguarias festivas preferidas é o bolo formigueiro que, embora não seja propriamente feito com formigas, parece ser sob medida para elas. Ao menos é isso que elas parecem considerar – basta deixar uma fatia ao relento e logo já fica repleta de formigas.

Além de inspirarem o nome de itens da nossa culinária, as formigas se destacam entre os insetos mais conhecidos por parte do público em geral. Afinal, elas estão por toda parte, tanto faz se nas grandes cidades ou no campo, nos jardins e canteiros ou até mesmo na nossa cozinha (no sentido figurado e também no real). Todo mundo conhece formiga e, até mesmo por isso, o pequeno e onipresente inseto é bastante frequente nas manifestações culturais, sendo comum em fábulas, contos, histórias, filmes, séries, desenhos animados, expressões populares e até no futebol, alguns desses temas já mencionados aqui nesta coluna [1] [2] [3] [4] [5] [6].

Do ponto de vista da classificação biológica, as formigas são enquadradas na família Formicidae, integrante da ordem Hymenoptera, uma das maiores dentre todos os seres vivos. Como grupo, as formigas são cosmopolitas, colonizando praticamente todos os ambientes terrestres, exceto os polos, sendo conhecidas cerca de 10 mil espécies [7], das quais em torno de 1% podem ser consideradas nocivas aos interesses do homem [8].

Mas, na real, mesmo com toda essa diversidade, na percepção popular pode-se dizer que “formiga” é tudo um bicho só. Tanto faz se com ou sem asas, se maiorzinha ou menorzinha, se preta ou amarela, se vai no açúcar ou não, se morde ou não… É tudo formiga. Esse nome popular meio que generalizado acaba diminuindo a percepção a respeito de um grupo muito diversificado e que ocupa distintos nichos ecológicos, quase sempre com papel de destaque. Há, por exemplo, o dobro de espécies conhecidas de formigas em relação às de mamíferos. De certa forma, as representações culturais das formigas acabam reforçando a ideia de que todas elas, independentemente dos muitos gêneros e espécies que compõem a família Formicidae, são um bicho só. Possivelmente, ao menos em termos de cultura pop, há uma única exceção: o filme do Homem-Formiga.

“Homem-Formiga” (Ant-Man, no original – Marvel / Universal, 2015) é um filme estadunidense baseado no herói de mesmo nome, pertencente ao universo da Marvel Comics. No filme, o álter ego do personagem título é o ladrão Scott Lang, que recebeu uma roupa que permite alterar o tamanho de objetos e  seres vivos, inclusive ele próprio. É o décimo segundo filme do Universo Marvel Cinematográfico, concluindo a chamada Fase 2. A direção ficou a cargo de Peyton Reed e os principais papéis do elenco couberam a Paul Rudd (Scott Lang), Evangeline Lilly (Hope Van Dyne) e Michael Douglas (Hank Pym). O longa foi lançado em 2015 e faturou mais de meio bilhão de dólares em bilheteria, sendo um sucesso de público e crítica.

Divulgação científica
Ao assistir ao filme, ainda na sala do cinema, percebi que foi dado tratamento diferenciado para cada uma das quatro espécies de formigas presentes na trama. Pela primeira vez, vi uma obra da cultura pop tratando diferentes espécies de formiga como unidades biológicas diferenciadas, com características e peculiaridades próprias, as quais foram adequadamente aproveitadas pelo Homem-Formiga, de acordo com cada situação específica. Percebendo o potencial disso para se fazer divulgação científica, convidei o amigo mirmecólogo (estudioso de formigas) Thiago Rodas e, em parceria, escrevemos um artigo comentando as diferenças entre essas espécies. O trabalho foi apresentado no I Colóquio de Zoologia Cultural, realizado em 2016, no Rio de Janeiro, tendo sido publicado como artigo completo no livro do evento [9]. Posteriormente, a convite dos editores da revista Journal of Geek Studies, o artigo foi publicado numa versão em inglês [10].

Quatro espécies de formigas estão presentes no filme: crazy ant (chamada de formiga-louca na versão em português), da espécie Paratrechina longicornis; carpenter ant (formiga-carpinteira), da espécie Camponotus pennsylvanicus; fire ant (formiga-de-fogo na versão dublada, formiga-lava-pés na versão legendada), da espécie Solenopsis geminata; e bullet ant (tocandira na versão dublada, formiga-cabo-verde na versão legendada), da espécie Paraponera clavata.

O gênero Paratrechina é cosmopolita e a espécie Paratrechina longicornis é considerada invasora no Brasil, sendo praga urbana [11] e agrícola. O nome comum, formiga-louca, é por tais formigas serem bem rápidas e agitadas. Além de seu comportamento oportunista, estão relacionadas a áreas degradadas, sendo consideradas dominantes em alguns hábitats. Eventualmente são danosas a aparelhos eletrônicos. O filme faz menção à rapidez de movimentos da formiga-louca, além de dizer que elas conduzem eletricidade [9] [10].

As formigas Camponotus são organismos cosmopolitas dominantes. Na América, representantes de Camponotus pennsylvanicus ocorrem no Canadá, Estados Unidos e Bermudas [12], fazendo parte do dossel de florestas e nidificando em galhos. O gênero é bastante especioso, estando representado no Brasil por quase 200 espécies [13]. No filme é mencionado que as formigas-carpinteiras têm boa capacidade de voo e movimentação [9] [10].

Os integrantes do gênero Solenopsis são popularmente chamados de formigas-de-fogo, devido à forte (e dolorosa) picada. São pragas cosmopolitas urbanas e rurais, vivendo no solo, local onde nidificam e forrageiam. A espécie mostrada no filme é mencionada como Solenopsis mandibularis, a qual é considerada sinônimo júnior de Solenopsis germinata, que tem distribuição pantropical, inclusive com ocorrência no Brasil [14]. Em regiões que sofrem alagamento, colônias de Solenopsis podem se agregar formando uma espécie de “bote”, migrando por rafting para outras regiões através da superfície da água. No filme é mencionado que as formigas-de-fogo são ótimas construtoras, sendo mostrado o movimento de rafting [9] [10].

Em português, o nome comum associado à Paraponera clavata é tocandira, mas, o nome em inglês pode ser traduzido como formiga-bala, isso devido à forte mordida que causa muita dor. São formigas arborícolas, de grande porte e comportamento variável de acordo com o hábitat em que se encontram, ocorrendo por toda a região neotropical, inclusive no Brasil [15]. São onívoras e nidificam perto do solo. Indígenas brasileiros utilizam formigas desse gênero em rituais de passagem à vida adulta [16]. No filme é mencionado que a picada da tocandira é uma das mais doloridas [9] [10].

Assim, o filme Homem-Formiga traz elementos agradáveis aos estudiosos de Zoologia, Entomologia e, mais especificamente, aos mirmecólogos. As formigas são peças-chave da trama, tendo presença ativa e ajudando o herói protagonista em várias situações, a ponto de uma delas, a formiga-carpinteira Antony, até ter nome próprio. Ela é a condutora preferencial de Scott Lang nos deslocamentos entre as locações. Por sinal, foi o próprio Lang que a batizou, inaugurando uma fase de relacionamento mais humanizado com as aliadas formigas, as quais, anteriormente, eram chamadas por números pelo primeiro Homem-Formiga, Hank Pym, o mentor de Lang [9] [10].

Conforme já mencionado, as diferentes espécies de formigas apresentam características distintas, o que influencia as suas respectivas formas de utilização. Em uma importante cena de batalha do filme, por exemplo, as formigas-de-fogo conduziram o Homem-Formiga pela água, as formigas-loucas foram responsáveis pelos danos na parte eletrônica e as tocandiras atacaram os capangas, cabendo às formigas-carpinteiras o transporte aéreo do herói.

Vale realçar que a proporção de tamanho entre as espécies de formigas foi corretamente mostrada em “Homem-Formiga”, bem como foram mencionadas algumas informações simples sobre o modo de vida desses insetos. Peculiaridades como a capacidade de suportar e carregar objetos bem mais pesados e o auto sacrifício em prol do bem-estar coletivo, típico de insetos coloniais, estão presentes no filme.

Em suma, considero Homem-Formiga um dos produtos midiáticos que melhor tenha representado os insetos, podendo contribuir para desmistificar o grupo e diminuir sua má fama generalizada [17]. Afinal, propagar um tratamento mais humanizado a todos os seres vivos pode ser um caminho para a efetiva valorização e preservação dos recursos naturais do planeta. E o poder de alcance da cultura pop pode ser de grande ajuda.

Referências
[1] https://faunanews.com.br/2022/05/18/insetos-para-criancas/
[2] https://faunanews.com.br/2021/10/20/a-senhora-dos-insetos/
[3] https://faunanews.com.br/2021/06/16/tai-o-que-voce-queria-o-futebol-dos-insetos/
[4] https://faunanews.com.br/2020/12/16/um-natal-com-historias-de-tanajuras-vagalumes-e-outros-insetos/
[5] https://faunanews.com.br/2020/10/21/insetos-no-folclore-brasileiro-muitas-narrativas-refletindo-discriminacoes-e-padroes-de-comportamento/
[6] https://faunanews.com.br/2021/07/21/na-boca-do-povo-os-insetos-nas-expressoes-populares/
[7] Hölldobler, B.& Wilson, E.O. 1990. The ants. The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, 746 p.
[8] Von Zuben, A.P.B. et al. 2004. Manual de controle integrado de pragas. Prefeitura Municipal de Campinas, Campinas, 68 p.
[9] https://www.researchgate.net/publication/311969357_As_formigas_Insecta_
Hymenoptera_Formicidae_do_filme_Homem-Formiga_com_notas_biologicas
[10] https://jgeekstudies.org/2017/08/27/ants-in-the-ant-man-movie-with-biological-notes/
[11] https://periodicos.ufjf.br/index.php/zoociencias/article/view/24144
[12] https://www.antweb.org/description.do?genus=camponotus&species=pennsylvanicus&rank=species
[13] https://www.antweb.org/taxonomicPage.do?rank=species&countryName=Brazil
[14] https://www.antweb.org/description.do?genus=solenopsis&species=geminata&rank=species
[15] https://www.antweb.org/description.do?rank=species&genus=paraponera&name=clavata
[16] Costa Neto, E.M. 2005. O uso da imagem de insetos em cartões telefônicos: considerações sobre uma pequena coleção. Boletín de la Sociedad Entomológica Aragonesa 36: 317–325.
[17] Da-Silva, E.R. et al. 2014. Marvel and DC characters inspired by insects. Research Expo International. Multidisciplinary Research Journal 4(3): 10-36.

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