Aranhas: cultura, simbolismo, misticismo e a sociedade humana

Em diversas culturas, as aranhas têm significados que vão além do medo que geralmente nutrimos por esses animais.

Kimberly da Silva Marta

Natural de Gravataí (RS), possui bacharelado em Ciências Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), onde foi bolsista ProUni. É mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é doutoranda em Biologia pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia: Diversidade e Manejo de Vida Silvestre na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Em 2012, iniciou sua carreira na iniciação científica, com projetos voltados à curadoria da coleção de Arachnida e Myriapoda no Museu de Ciências e Tecnologia da PUC-RS. Posteriormente, iniciou projeto no Museu de Ciências Naturais (SEMA – ex FZB-RS) com morfotipagem de aranhas da família Salticidae (as papa-moscas), em que recebeu menção honrosa no salão de iniciação científica de 2013 da instituição. No mestrado, o projeto desenvolvido foi com comunidades de aranhas dos Campos Sulinos. E no doutorado, foca-se na compreensão de taxonomia de grupos recentes e filogenia do gênero de papa-moscas Tullgrenella Mello-Leitão, 1941.
Ciências, aranhas e popularização científica são as paixões de Kimberly. Durante toda sua carreira esteve envolvida nos estudos com a aracnofauna! Juntamente com outras colegas aracnólogas, é membra do coletivo Support Woman in Arachnology (SWA), que promove o avanço e o apoio entre mulheres na Aracnologia. Também foi professora de cursinhos populares pré-vestibulares com o intuito de buscar uma educação igualitária entre as diferentes classes sociais e fazer com que mais jovens de baixa renda consigam realizar seus sonhos e objetivos.
Sua maior descoberta foi a descrição e conhecimento, em colaboração com colegas latino-americanos, da espécie de aranhas de número 50 mil, trabalho que lhe rendeu uma retratação pelo World Spider Catalog.

06 de dezembro de 2023

FAUNA NEWS - Aranhas: cultura, simbolismo, misticismo e a sociedade humana

O termo aracnofobia, medo de aranhas, não é atual e nem os organismos que causam esse alvoroço nas pessoas. Por vezes escutamos amigos ou familiares dizerem que têm pavor de aranhas ou, muitas vezes, um trauma gerado por esses animais. Mas será que foi sempre assim?

Como as civilizações originárias viam e pensavam sobre os aracnídeos, principalmente as aranhas? Vem comigo, que vou contar como surgiu o termo “arachne”, que significa “aranha”.

Para a mitologia grega, Aracne era uma jovem asiática com uma extraordinária habilidade para o bordado, a tecelagem. Seus feitos eram admirados por todos, chamando muita atenção pela perfeição dos detalhes. Aracne conquistou a fama de ser a melhor na arte de fiar e tecer a lã. Dominada por sua vaidade e bem feitoria, a jovem pensava que poderia ser vista como a melhor, ultrapassando até mesmo a filha de Zeus, a deusa Atena.

Além de ser considerada a deusa da Sabedoria, Atena era também a deusa que presidia as artes e os trabalhos manuais — a tecelagem inclusive.

Arache um dia propôs uma disputa com Atena, que como deusa não aprovou a audácia da jovem em propor-lhe um desafio. Através de diferentes disfarces, a filha de Zeus tentava enviar mensagens a Aracne, para que desistisse da disputa. Mas a jovem, dominada por sua vaidade, continuava acreditando que podia ser a melhor tecelã de todos os tempos. Até que por fim, as duas disputaram e realizaram obras incríveis de fiar, agradando ao restante dos deuses.

Entretanto, Atena, enciumada por não conseguir observar nenhum erro na obra de Aracne, não aceitou a situação. Aracne, sentindo-se humilhada, pensou que não merecia mais a vida e pensou em tirá-la. Atena se sentindo culpada por toda situação de vulnerabilidade que causara, decidiu então poupar a vida de Aracne, por fim transformando-a em uma aranha e a corda e seus fios em teias. Sendo assim, a jovem seria reconhecida por toda eternidade.

Nos povos originários

Além do mito de Aracne, o apanhador de sonhos (filtro dos sonhos), típico da vários povos originários, se inspirou na teia de aranha. Há também o simbolismo da teia: ao fiar a Teia da Vida, a aranha teceria o próprio destino. Suas oito pernas simbolizariam o infinito. Cada milímetro da sua teia revela a unicidade que conecta tudo o que existe entre a Terra e o cosmos.

Para alguns povos indígenas, a aranha simboliza também a alma. Em diferentes culturas, a aranha é relatada em obras de arte, como para os cherokees (povos originários dos Estados Unidos), em que a ranha é chamada de Avó Aranha, a Criadora, que é a trazedora da luz e também quem deu aos seres humanos o dom de fazer o fogo e trabalhos de cerâmica.

Entre os povos originários do Brasil, há a história da Aranha-Encantada dos indígenas Huni Kuĩ, da região do rio Jordão, no Acre. Para a maior parte destes povos, o simbolismo da aranha está ligado a um bem cultural (o roubo do fogo, a tecelagem, o desenho, a cerâmica, o plantio etc.), ou à arte de produzi-lo. Os Huni Kuĩ relatam a aranha como Basne Puru Yuxibu [História da Aranha Encantada]. A lenda conta que uma jovem havia observado em sua casa uma aranha tecendo rapidamente sua teia e suplicou ao animal que pudesse também tecer sua própria casa e roupas. Assim sendo, Basne, uma anciã mítica tecedora, atendeu seu pedido e ensinou-lhe a tecer, fornecendo fios de seda e sementes de algodão para o plantio. Dessa forma, o povo indígena do Acre aprendeu a fazer suas próprias roupas e adornos para sua casa.

Há um povo originário de Rondônia quase extinto, os Ajuru, que conta a história do Dono Fogo (Kupekarantô) e sua relação com o simbolismo da aranha. Kupekarantô fez o céu já caír três vezes, matando muita gente; sendo o atual o quarto céu. Tentando impedi-lô, os dois irmãos deuses, Xtarontin e Wakowereb, viravam aranhas, cobras, mordiam o Dono do Fogo, mas ele nem ligava, continuava com o machado tentando derrubar o próximo céu. Finalmente os dois irmãos viraram mutuca, sugaram Kupekarantô, que acabou morrendo, soltando o fogo e o machado. Os dois fugiram com os novos dons, mas um deles recomendou ao outro que não olhasse para trás; que desobedeceu e seu olhar fez reviver o Dono do Fogo, que incendiou a terra.

Os dois fugiram para a casa da aranha, um deles queimou, o outro salvou-se. A aranha tentou roubar o machado, mas não conseguiu. Depois do fogo, veio uma enchente que matou muita gente.

O simbolismo da aranha para o Xamanismo traz o Totem Aranha como Animal de Poder. As aranhas são vistas como delicadas, laboriosas, sutis e misteriosas, simbolizando o poder feminino e demonstrando sua força nos momentos de real necessidade. Os xamãs explicam que se o Totem de Aranha aparecer, a aranha serve de alerta para lembrarmos que somos os protagonistas de nossa jornada e os criadores de tudo o que acontece em nossas vidas. Teríamos o dom da criação e o poder de tecer os nossos caminhos de forma consciente.

Contam lendas de que uma aranha teceu o primeiro Filtro dos Sonhos para proteger o sono de toda a tribo contra as energias negativas e de ataques, que avançavam sobre a aldeia no escuro da noite. A aranha trafegaria pelas sombras e pela luz, além de também ser considerada como transportadora de almas entre os diferentes tempo-universos. Ela também oferece a visão do infinito e a lembrança de que seriamos os verdadeiros mestres e arquitetos do nosso destino.

Na África

Para o oeste Africano, criaturas relacionadas às aranhas também estão presentes. Anansí é retratado como um deus enganador, que sempre quer levar a melhor sobre os outros animais devido a sua alta habilidade de enrolação e criação de histórias. Também considerado um deus protetor, retratado como um híbrido entre uma aranha e um homem. Além disso, para algumas religiões, como a umbanda, a aranha é vista como animal de Oxum e diz respeito a criatividade, autodependência, paciência e habilidade. Ela reflete ainda a sabedoria para compreender o propósito e o lugar da sua alma neste mundo.

No Egito Antigo, contemplavam a Deusa-Tecelã: aquela que, assim como faz a aranha até os dias de hoje, produziu do seu ventre os fios que formam a estrutura do universo. Essa fiandeira cósmica era conhecida como a Deusa Neit. Já para a tradição Hindu, a deusa tecelã recebe o nome de Maya. Posicionada no centro de sua teia, ela não apenas tece a ordem cósmica, mas a reproduz em nosso mundo dos sentidos de forma tão perfeita, que não distinguimos entre a realidade em si e nossa versão dela. Para os Sumérios, Uttu era considerada uma deusa da comunicação, sendo ela quem estabelece a comunicação entre todos os seres. Ensina a costura, a confecção de roupas e sua estética, a forma como as pessoas se apresentam. Uttu, além de estabelcer a comunicação entre os seres, rege também os encontros.

Nas civilizações pré-colombianas

Já para o México, a figura da aranha aparece no mural do complexo de Tepantitla e foi identificada como uma das representações da grande deusa de Teotihuacán. Acredita-se que ela foi uma deusa do submundo, escuridão, terra, água, guerra e possivelmente até mesmo da criação.

Para algumas civilizações pré-colombianas, como as que habitavam o norte do Peru (de cultura cupisnique e mochica, por exemplo), o Deus Aranha era uma divindade. Seu significado é incerto, mas tem sido associado à caça, guerra, poder, chuva ou tecido. Esse deus também é chamado de “decapitador”, sugerindo uma ligação com rituais de sacrifício: assim como a aranha captura sua presa, os guerreiros mochicas capturavam, amarravam e depois bebiam o sangue de seus inimigos.

Para o sul do Peru, uma das mais famosas obras de artes dos povos originários que retratam a aranha seria as linhas de Nazca. Diferentes explicações aparecem para o entendimento dos diagramas, principalmente o da aranha. Atualmente, acredita-se que o desenho seja um diagrama anamórfico da constelação de Orion. Outros estudiosos acreditam também que seja um grande sistema de irrigação e, para visão espiritual, seja considerada uma oferenda aos grandes deuses, simbolizando fertilidade.

Na Ásia

Para algumas civilizações japonesas, a lenda Jorōgumo significa “senhora de ligação”. A Jorōgumo também é conhecida como a dona da cachoeira e, por vezes, foi relacionada com a espécie de aranha Nephila clavata, chamada popularmente como joro. Em uma das versões da lenda, Jorōgumo é adorada como uma deusa que protege as pessoas de se afogarem.

Para a filosofia budista, existe a Teia de Indra (Rede de Indra, Joias de Indra ou Pérolas de Indra). A ideia central do pensamento cosmológico e metafísico budista é que todos os fenômenos estão intimamente conectados.

Imagine uma teia de aranha multidimensional na alvorada, coberta com gotas de orvalho. Cada gota de orvalho contém o reflexo de todas as outras gotas de orvalho. E, em cada gota refletida, os reflexos de todas as outras, assim por diante até o infinito. Esse é o conceito budista do universo em uma imagem.” – Alan Watts.

Agora que mergulhamos em muitas histórias que relacionam aranhas, podemos compreender a dimensão de como as civilizações originárias viam e pensavam sobre elas. Ao pensarmos em uma linha de tempo da evolução da cultura humana, muitos desses animais sofreram com a ideia de que aranhas seriam animais ruins.

Entretanto, podemos observar o equívoco. Atualmente, continuamos aprendendo e tendo a presença de aranhas sob influência de nossas vidas. Seja pelo fato de serem consideradas artrópodes topo de cadeira, realizando controle biológico de insetos causadores de doenças e pragas agrícolas, ou também na indústria têxtil, com a produção de seda em larga escala. Vale ressaltar que muitos estudos científicos, relacionados a farmacologia, também são derivados de pesquisas bioquímicas do veneno de aranhas. Seja para a produção de remédios e até mesmo para entendimento de questões evolutivas. Sejamos conscientes na educação ambiental ao perceber e entender que nem toda aranha vai nos fazer mal, nem toda aranha é de importância médica. Podemos sim admirá-las e observá-las de maneira mais consciente, com uma visão biológica, desmistificando essa cultura do medo.

Referências

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Sobre o autor / Kimberly da Silva Marta

Natural de Gravataí (RS), possui bacharelado em Ciências Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), onde foi bolsista ProUni. É mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é doutoranda em Biologia pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia: Diversidade e Manejo de Vida Silvestre na […]