Por Dimas Marques
Editor-chefe
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Pelo menos três das 50 aranhas apreendidas com o traficante de fauna russo Kyrill Kravchenko, em 17 de junho, tiveram a identificação de espécie errada e foram soltas fora de seu habitat. A afirmação é de um grupo de aracnólogos que assistiu a um vídeo da devolução delas à natureza publicado em redes sociais. Os animais estavam sob responsabilidade do Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ibama em Seropédica, no Rio de Janeiro.
O vídeo foi publicado em 2 de julho no perfil do Instagram e na página do Facebook do Instituto Vida Livre, ONG fluminense que se dedica à reabilitação e soltura de animais silvestres. Nas imagens, o diretor da instituição Roched Seba e o veterinário João Vitor Rude soltam em uma área de mata atlântica no estado do Rio de Janeiro pelo menos três aranhas. No texto da postagem consta que a ação envolvia mais de 60 aranhas Avicularia sp., nome científico de um grupo de aranhas-caranguejeiras (tarântulas), mas que não especifica a espécie.
A postagem acabou sendo divulgada em um grupo de WhatsApp formado por aracnólogos, que passaram a discutir a identificação das aranhas das imagens. Para o biólogo e pesquisador do Instituto Butantan, Rogério Bertani, houve erro. “São duas espécies de aranhas-caranguejeiras, também conhecidas como tarântulas, a Pachistopelma bromelicola e a Iridopelma sp., provavelmente Iridopelma zorodes”. A afirmação do especialista tem de ser levada em consideração: ele é o responsável pela descrição para a Ciência da Pachistopelma bromelicola, além de outras tantas caranguejeiras brasileiras.
Os aracnólogos Ana Lúcia Tourinho, que é pesquisadora e professora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), e Leonardo Sousa Carvalho, pesquisador e professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), são integrantes do grupo que discutiu a identificação das aranhas e concordam com Bertani. De acordo com o pesquisador do Instituto Butantan, o gênero Pachistopelma é endêmico de algumas regiões do Nordeste do Brasil. “Existem duas espécies, a Pachistopelma rufonigrum, distribuída do Rio Grande do Norte até o rio São Francisco, em Alagoas, e a Pachistopelma bromelicola, que aparece nas filmagens, ocorre do rio São Francisco, em Sergipe, até a região do Recôncavo Baiano, um pouco abaixo de Salvador, na Bahia”, afirma. Já a Iridopelma zorodes tem distribuição aproximada a da Pachistopelam bromelicola.
Ana Lúcia, Carvalho e Bertani integram um grupo de aracnólogos que elaborou um documento informando os ministérios públicos Federal e do estado do Rio de Janeiro sobre a soltura que teria introduzido as aranhas de espécies exóticas (não nativas de uma região) em território fluminense.
O Instituto Vida Livre afirma que todo o processo de identificação e reabilitação das aranhas foi feito pela equipe do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Ibama. De acordo com Roched, a ONG foi acionada única e exclusivamente para realizar a soltura. “No dia 20 de junho, nós fomos solicitados a ajudar no encaminhamento dos animais para a área de soltura designada pelo órgão, o que se deu no dia seguinte, 21 de junho”, destaca. Ele afirma ter ficado com os animais somente dia 21, no período entre a retirada no centro de triagem e a soltura.
Roched relata não ter efetuado a soltura de 60 aranhas, apesar de ser essa a informação na postagem publicada pelo Instituto Vida Livre. A ação, segundo ele, envolveu 34 animais, nem todos da apreensão com o traficante de fauna russo. Na Autorização para Transporte e Destinação de Fauna nº 126/2021, datada de 21 de junho de 2021 e assinada eletronicamente pelo analista ambiental Daniel Marchesi Neves em 6 de julho de 2021, emitida pelo Cetas do Ibama e apresentada ao Fauna News pelo Instituto Vida Livre, constam um cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), duas pererecas Boana semilineata, uma perereca Aparasphenodon brunoi, uma perereca Phyllomedusa cf. burmeisteri, cinco sapos do gênero Odontophrynus, 15 baratas Petasopodes sp. e sete aranhas-caranguejeiras da família Theraphosidae, além de duas aranhas que, de acordo com Roched, são as que aparecem no vídeo. O destino deles foi uma área de soltura de animais silvestres (Asas) cadastrada pelo Ibama localizada fora da capital fluminense.
Segundo Roched, as duas aranhas que aparecem no vídeo estão identificadas como Avicularia sooretama no documento do Ibama. Carvalho, da UFPI, afirmou que essa espécie consta para o estado do Rio de Janeiro exclusivamente por um registro de 1956, baseado em um animal coletado no Parque Nacional de Itatiaia. “Para que uma soltura seja realizada dentro da lei, os espécimes devem ser soltos em região onde haja ocorrência natural de suas espécies”, destaca o aracnólogo. Está no inciso II do parágrafo 1º do artigo 21 da Instrução Normativa nº 5/2021 do Ibama.
O Ibama, órgão que recebeu os animais por meio do Cetas de Seropédica (RJ), realizou a identificação e autorizou a soltura, foi procurado pelo Fauna News em 6 de julho para esclarecer detalhes do processo de identificação das aranhas e da soltura. Por diversas vezes, o Instituto informou que uma resposta estava sendo elaborada e seria enviada. Mas, até o fechamento desta matéria, não a enviou.
“Eu costumo receber pedidos de identificação de espécimes apreendidos, por fotos. Há um clima de cooperação com órgãos ambientais. Nosso trabalho é o mesmo: a proteção do meio ambiente. Os pesquisadores geram conhecimento e esse conhecimento tem que retornar à sociedade. E isso é feito nesses momentos. É obrigação do pesquisador; essa é a forma que vejo. E é frustrante ter gerado conhecimento que, quando é necessário, deixa de ser usado, provavelmente, por falhas de comunicação. Mas essa é também uma oportunidade de tentar sanar essas falhas”, afirma Bertani. O pesquisador do Instituto Butantan propõe que seja elaborado um cadastro de especialistas que possam fazer a identificação de animais apreendidos, mesmo remotamente por meio de fotos.
Consequências
Bertani afirmou que as aranhas podem não sobreviver por diferenças nas condições climáticas, do tipo de presa de que se alimentam ou do abrigo que ocupam. “As Pachistopelma, por exemplo, vivem exclusivamente dentro de bromélias tanque, que formam grandes conjuntos em áreas de restinga no litoral do Nordeste. Muito provavelmente, essas bromélias não existem no local da soltura e, se existirem, não apresentem as mesmas formações com centenas de bromélias próximas umas das outras, como vemos no Nordeste.”
De acordo com Carvalho, “considerando-se um cenário bom, em que os animais introduzidos não carregam qualquer organismo patogênico, caso sobrevivam, eles podem desencadear eventos que modificarão a dinâmica do ecossistema, provocando desequilíbrio ambiental através de efeitos diversos, como perda de qualidade ambiental e, consequentemente, diminuição da qualidade dos serviços ecossistêmicos providos pela região de soltura.” Ana Lúcia destaca ainda que, no caso de ter sido feita a soltura de 60 aranhas, há a possibilidade de haver um esgotamento de recursos que atendem as aranhas que vivem no local da soltura.
A pesquisadora da UFMT lembra também o risco da introdução de doenças. Ana Lúcia explica que animais silvestres são vetores de patógenos, que podem ser transmitidos para animais que já vivem em uma área, ponde dizimar populações nativas.
O traficante russo
O biólogo russo Kyrill Kravchenko foi detido em 17 de junho pela Polícia Rodoviária Federal no município de Seropédica (RJ). Ele foi surpreendido em um ônibus que seguia para São Paulo com 175 animais entre aracnídeos (aranhas e um amblipígeo), besuros, insetos, anfíbios e répteis que seriam traficados para a Europa.
Por ter sido flagrado em janeiro no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos (SP), tentando embarcar para a Rússia com 200 animais, Kravchenko teve seu passaporte retido pela Polícia Federal. Nessa ocasião, o traficante já era conhecido pelo Ibama. Em 2017, ele foi flagrado transportando dezenas de cobras, sapos, baratas e lagartos de espécies nativas do Brasil vivos escondidos em sua bagagem, quando o avião em que estava, saído do Brasil com destino à Rússia, fez escala em uma aeroporto na Holanda.
De acordo com o repórter Josmar Jozinho, do UOL, Kravchenko está preso preventivamente em um uma cela superlotada do Centro de Detenção Provisória de Pinheiros (CDP 3), na zona oeste da cidade de São Paulo.