Por Vitor Calandrini
Primeiro-tenente da PM Ambiental de Paulo, onde atua como chefe do Setor de Monitoramento do Comando de Policiamento Ambiental. É mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP
nalinhadefrente@faunanews.com.br
Se olharmos nosso ordenamento jurídico, vemos que existem duas ações bem distintas: uma relacionada aos verbos associados ao tráfico de animais, como comprar, vender, expor a venda e manter animais silvestres em cativeiro quando não advindos de criadores autorizados; e aquela descrita como abuso ou maus-tratos a animais, quando animais são submetidos a sofrimento ou abuso. Mas a grande questão é: pode uma pessoa ter um animal silvestre advindo da natureza sem que se imponha maus-tratos a esse animal? Punir alguém por maus-tratos e tráfico de animais seria punir uma pessoa duas vezes pela mesma ação?
Bem vamos a uma breve explanação sobre o assunto.
Ao analisarmos friamente a Lei de Crimes Ambientais, olhando o crime de maus-tratos a animais, podemos ter aqueles que veem claramente a possibilidade de sua aplicação pelo simples fato de ser encontrado um animal retirado da natureza aprisionado em uma residência, como um animal de estimação. Outros, lendo a mesma Lei, enxergam que se o animal estiver em uma gaiola limpa, com água e comida não se pode falar em maus-tratos, pois ele não está sendo submetido a sofrimento. Vendo esse discurso dúbio na leitura do mesmo artigo de uma lei, comecei e estudar onde poderia ser amparada essa divergência e cheguei à conclusão de que, na verdade, a dualidade não está na lei, mas no conceito que cada pessoa adota para considerar a fauna. Como assim?
Bem, vou explanar sobre minhas observações.
Para aqueles que defendem que o simples fato de ter animais silvestres em cativeiro, desde que com comida, água e um viveiro limpo, não configuraria maus-tratos, destaca-se um visão mais antropocêntrica e utilitarista da fauna. Eles entendem que os animais possuem a “função” de servir como bicho de estimação e, sendo assim, bastaria para ele o mínimo para manter suas necessidades fisiológicas atendidas. Dessa forma, não há motivo para falar em maus-tratos, haja vista que atualmente animais silvestres podem ser adquiridos para esse fim em criadores comerciais legalizados.
Já para aqueles que defendem que o crime de maus-tratos está intrinsicamente ligado à manutenção de animais silvestres em cativeiro, possuem uma visão biocêntrica da fauna, ou seja, defendem a proteção não apenas de suas necessidades fisiológicas, mas das cinco liberdades essenciais À vida, sendo elas: “livre de sede e fome; livre de desconfortos; livre de dor, lesões e doenças; liberdade para expressar comportamento normal; e livre de medo e de estresse”. E neste ponto, a grande pergunta é: existe alguma possibilidade de um animal mantido irregularmente em cativeiro, ou até mesmo regularmente, expressar um comportamento normal da espécie?
De fato, temos uma legislação que protege os animais de abuso e maus-tratos, ou seja, uma visão voltada ao biocentrismo, mas essa mesma legislação permite o comércio de animais silvestres como se fossem bichos de estimação.
Outro ponto que reforça a possibilidade de aplicação de sanções para delitos distintos (os ligados ao tráfico de fauna e os ligados aos maus-tratos) é o próprio objeto jurídico protegido por esses tipos penais, pois se no do tráfico de animais o bem protegido é a “coletividade”, no caso dos maus-tratos a animais é o “legítimo sentimento de humanidade” que veda a crueldade a qualquer ser vivo, humano ou não-humano. Sendo assim, não há problema algum na aplicação das duas sanções em um mesmo indivíduo.
A grande questão, então, dessa discussão é: qual visão de mundo, de meio ambiente e de fauna vamos adotar? A antropocêntrica ou a ecocêntrica? Essa decisão cabe a cada um de nós, pois, de fato, são as escolhas individuais que geram a consciência coletiva.
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