Casal que há mais de 30 anos viaja até os lugares mais remotos do Brasil para fotografar a natureza. São adeptos da ciência cidadã, ou seja, do registro e fornecimento de dados e informações para a geração de conhecimento científico
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No início da década de 1990, não éramos observadores de aves. Éramos observadores de natureza. Estávamos à procura de um lugar que tivesse muita natureza e infraestrutura para turismo para passar nossas férias. Após analisar os pacotes oferecidos por algumas agências, decidimos fazer a nossa primeira viagem para o Amazonas.
O pacote turístico incluía duas noites no Hotel Tropical, em Manaus, e três noites no primeiro hotel de selva do Brasil, o Ariaú Amazon Towers.
Já tínhamos viajado para vários destinos de natureza, os quais mais tarde passaram a ser chamados de ecoturísticos. Mas nunca tínhamos estado em uma verdadeira selva e muito menos na Amazônia – era um passeio para o desconhecido.
Chegamos em Manaus, fomos para o Hotel Tropical e aí tivemos a primeira surpresa da viagem – um hotel extremamente luxuoso, com corredores gigantescos, enormes portas de madeira maciça e com lustres de cristais que eram hipnotizantes de tão lindos. Dentro, havia várias lojas de artigos locais, roupas e joalherias – tudo era um luxo.
Andávamos pelo hotel e a impressão é que não estávamos no Brasil, pois só escutávamos pessoas falando inglês, alemão, francês e outros idiomas – muito pouca gente falando português. Nunca tínhamos visto tantos estrangeiros em qualquer outro lugar do país.
No outro dia, pela manhã, seguimos com um barco pelo rio Negro até o Ariaú Amazon Towers. Todo o hotel era em madeira e suspenso sobre palafitas. Os quartos ficavam em torres redondas, também suspensas, e existiam oito quilômetros de passarelas de madeira que interligavam todos os ambientes do hotel e que permitiam fazer longos passeios na altura das copas das árvores. Em alguns locais, essas passarelas chegavam a 40 metros de altura.
No hotel existiam muitos macacos de várias espécies que ali ficavam para conseguir alguma fruta dada pelos turistas. Eram macacos selvagens e, embora já estivessem habituados com a presença humana, alguns mostravam agressividade – tentavam roubar frutas ou qualquer alimento que ficassem por alguns instantes fora de nossas mãos.
Logo no primeiro dia, um macaco-aranha (gênero Ateles) nos adotou e para nossa surpresa nos acompanhou durante os três dias que ficamos no hotel. Saíamos para as caminhadas nas passarelas e o macaco-aranha nos seguia saltitando pelas arvores. Muitas vezes, ele pulava das árvores diretamente em nossas costas e nos abraçava para continuar o passeio dessa forma.
Em um dos dias, passou um gavião vocalizando e em segundos o nosso amiguinho pulou em nossas costas e nos agarrou com muita força. Era visível o seu medo – estava pedindo nossa proteção. Em outros momentos, sentávamos em algum banco para descansar e ele deitava ao nosso lado, chegando inclusive a deitar em nosso colo. A ligação dele conosco era tão intensa que fomos surpreendidos ao perceber que ele dormia agarrado na tela de ferro da janela do nosso quarto, pelo lado de fora – o quarto ficava no terceiro andar de uma das torres. Ali nasceu uma amizade inesquecível.
Após três dias e muitos passeios, nos despedimos do hotel e de nosso amiguinho. No caminho para o barco com as malas, ele percebeu nossa partida e estava triste, decepcionado, parecendo entender o que estava acontecendo. E, do outro lado, a Susana chorava essa despedida.
Nessa viagem floresceu um grande amor pelo Amazonas e uma vontade enorme de retornar e conhecer outros lugares dessa imensidão.
De tanto estar em contato com a natureza, em 2009 nos tornamos observadores de aves e continuamos a viajar. Não apenas para estar na natureza, mas também para registrar em fotos a beleza das aves.
De lá para cá, foram muitas viagens em busca de novas espécies e para conhecer novos lugares. Até que em 2015, resolvemos voltar para o Amazonas e explorar um pouco o bioma da Amazônia – apenas o estado do Amazonas tem 931 espécies de aves registradas no WikiAves (setembro de 2020).
Meses antes da viagem, acertamos a nossa expedição com os guias Luiz Fernando Carvalho e Vanilce Souza Carvalho. Foram muitas semanas de planejamento, levantando as espécies dos locais que iriamos visitar, equipamentos a levar, roupas, custos… – essa é uma fase muito gostosa de qualquer viagem!
Faltando algumas semanas para nosso ida, ficamos muito apreensivos, pois estavam ocorrendo muitas queimadas na região – segundo o G1-Amazonas, em 2015 o estado tinha atingido seu recorde de focos de incêndio, registrados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que contabilizava dados via satélite há 17 anos. A falta de visibilidade provocada pela fumaça estava obrigando o aeroporto de Manaus, muitas vezes, a operar apenas por instrumentos. A TV noticiava a possibilidade de fechamento do aeroporto em alguns momentos, mas, felizmente, essa situação não chegou a atrapalhar nosso voo.
O roteiro da viagem, planejado pelos amigos Luiz Fernando e Vanice, tinha como destaque Manaus (Torre do MUSA – Museu da Amazônia – e Ramal do Pau Rosa), Iranduba, Manacapuru, Presidente Figueiredo, Distrito de Balbina e Novo Airão.
Nessa viagem fizemos mais de 100 lifers (novas espécies) e foram muitos bons momentos vividos. Iremos compartilhar a experiência do registro do galo-da-serra (Rupicola rupicola) em Presidente Figueiredo e do rabo-de-arame (Pipra filicauda) em Novo Airão.
A viagem de Manaus para Presidente Figueiredo é feita pela BR-174 – uma estrada com 1.902 quilômetros de extensão e que liga Manaus com Boa Vista, na divisa com a Venezuela. É uma via que, literalmente, corta a selva em muitos trechos, com longas retas e lindas paisagens – só a viagem já é uma bela experiência.
Presidente Figueiredo é o melhor lugar do Brasil para fotografar o galo-da-serra, que por muitos é considerada a ave mais bela do Brasil. Ele pode chegar a ter 28 centímetros e ocorre somente no bioma da Amazônia. No estado do Amazonas, apenas Presidente Figueiredo tem registros fotográficos dessa espécie no WikiAves.
Para fazer o registro, fomos até uma arena, que na época reprodutiva é o local aonde vários machos da espécie se reúnem, se assim pudermos dizer, e ficam pousados cerca de um metro do chão aguardando a chegada da fêmea. Na chegada da “princesinha”, os machos descem no chão e cada um faz o seu espetáculo, chamado de display, para que a fêmea escolha o felizardo para o acasalamento. Essas arenas são usadas pela espécie por décadas.
Tivemos o privilégio de observar cerca de 12 machos aguardando a chegada da fêmea – essa organização impressiona e o ritual é um espetáculo tão belo quanto a própria ave, que com palavras é impossível descrever.
Somente essa experiência já teria valido a viagem, mas teve mais, muito mais…
Para registrar outra belezinha chamada de rabo-de-arame, que também só ocorre no bioma da Amazônia, fomos até Novo Airão, local no Brasil com maior número de registros da espécie. Novo Airão é sede do Parque Nacional das Anavilhanas, sendo conhecido pelo turismo de observação do boto-cor-de-rosa – aquele que segundo a lenda, em noites de lua cheia, se transforma em um rapaz elegante e bem vestido que visita as aldeias para encantar e seduzir as moças bonitas. Após engravidar a moça, ele retorna para o rio e volta a se transformar em boto. Como estávamos por lá, e não tinha lua cheia, fomos ver os botos – valeu a pena!
Para chegar até o local de observação de rabo-de-arame, pegamos um barco e navegamos pelo rio Negro por cerca de uma hora – deveríamos então entrar em um pequeno afluente, que em razão da seca estava totalmente seco. Não tivemos outra escolha e caminhamos por cerca de 45 minutos pelo leito desse afluente com mata dos dois lados que se fechava no alto. Mesmo estando com perneiras, tivemos que superar o medo de pisar em alguma serpente – o leito estava totalmente coberto por folhas e, a cada passo que dávamos, nossos pés afundavam nessas camadas de folhas.
Após a longa caminhada, chegamos ao local onde essa espécie normalmente é observada. Trata-se de um ponto onde os machos e as fêmeas se encontram para o ritual do acasalamento. Olhávamos em todas direções e não víamos o danado do bichinho. O calor era potencializado pela falta de vento no meio da mata. Sentamos em um tronco de árvore caído na selva e ficamos um tempão esperando.
De repente, o Luiz Fernando localizou um pequeno ponto amarelo, longe, bem longe… Era o rabo-de-arame. Era um único indivíduo que foi se aproximando lentamente e, após alguns minutos, estava a poucos metros de nós. Ele ficou muito tempo bem próximo – como dizemos, deu o maior mole. Foram centenas de fotos em todos os ângulos para tentar registrar a beleza desse pequeno pássaro. A recompensa foi ter feito fotos que consideramos estar entre as melhores que já produzimos até hoje.
Temos uma ligação sentimental muito forte com o Amazonas e, desde a década de 90, de certa forma acompanhamos o que ocorre por lá. Nesses anos que se seguiram, acompanhamos com tristeza a falência e abandono do hotel Ariaú, que chegou a receber presidentes e nobres e hoje é apenas um monte de ruínas no meio da selva.
Todas as vezes que estivemos em Manaus, reservamos algumas noites no hotel Tropical, um local que temos excelentes recordações. Pudemos perceber, a cada ano, a falta de hospedes e a redução quase que total dos turistas estrangeiros. Acompanhamos também com tristeza a sua decadência e falência – um pecado!
Tivemos muitas outras experiências no Amazonas em 2015, 2018 e 2019, mas elas ficarão para um próximo artigo.
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