
Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Nosso leitor deve estar pensando: de novo esta história de plano de contingência? Afinal, em 20 de julho, publiquei o artigo “Área de soltura tem que ter plano de contingência?”. E mais: se esta coluna é sobre segundas chances, por que não falar das solturas mesmo?
Eu respondo: calma, amigo leitor, este artigo de hoje é exatamente sobre isso!
No artigo anterior, apontamos alguns aspectos que devem fazer parte do plano de contingência de uma Área de Soltura e Monitoramento de Vida Silvestre (ASM). Agora, então, vamos mostrar como isso pode funcionar na prática.
Um dos fatores que mais impactam solturas de animais é a ação de caça.
Caso 1 : passeriforme apreendido com a arapuca
Nesta época do ano, temos muitos animais jovens quem nascidos no ano anterior, buscam novas áreas. Como estamos vivendo um período de seca na região da ASM que trabalho em Santo Antônio do PInhal (SP), esses indivíduos nem sempre encontram alimento suficiente, sendo presas fáceis para “apanhadores de pássaros”. Uso essa expressão porque na cabeça do “cidadão” que realiza tal ato de caça da fauna nativa, portanto ilegal, não há crime! Afinal, o bicho está ali e não é de ninguém, pensa o sujeito.
Mas voltemos ao nosso plano de contingência.
Como temos um estreito e proveitoso relacionamento com a Polícia Militar Ambiental do Estado de São Paulo, prontamente recebemos o animal ainda na arapuca, poucas horas após a sua captura. A ave foi apreendida cerca de 80 quilômetros distante da área de soltura, portanto, considerando a espécie que é de pequeno porte e sua taxa de deslocamento no ambiente ser inferior a essa distância, não ocorreu uma recaptura de animal solto, mas uma captura de animal de vida livre.
Essa rápida análise permite inferir quando, quantas vezes e como acontece esse tipo de crime, trazendo dados de inteligência para a Polícia Militar Ambiental. Também, pelo fato de o tempo decorrido da captura ser pequeno, é possível diminuir o estresse do animal e rapidamente devolvê-lo ao ambiente natural já que a espécie é de ocorrência na área da ASM. Ou seja, apesar de continuarmos tendo ações ilegais de apanha de pássaros silvestres, nosso plano de contingência funciona bem, permitindo mitigar (pelo menos um pouco) os danosos efeitos para a fauna da região.
Caso 2: recaptura de animal soltos
Uma das recomendações para solturas é fazer o anilhamento dos animais a serem soltos, de tal forma a permitir a identificação de carcaças que venham a ser encontradas ou até mesmo permitir a recuperação de animais vivos. Esta é a situação exata do caso que vou relatar agora.
Dois indivíduos da espécie X (o nome foi omitido para proteger os inocentes!), anilhados, foram soltos em local e data conhecidos por nós. Passados alguns meses, a Polícia Militar Ambiental autuou um cidadão que possuía arma de fogo irregular e mantinha encarcerados nossos dois indivíduos da espécie X, que é particularmente visada para a caça.
No caso, esses dois indivíduos faziam parte de um lote maior que foram devolvidos à vida livre justamente com o objetivo de realizar um reforço populacional para a espécie na área em que foram soltos. Essa área é monitorada, inclusive com câmeras trap; é vasta e rica o suficiente para a manutenção da população da espécie; é cercada e possui portaria de entrada e controle de visitação. Mesmo assim, houve caça e a captura das aves.
Como os animais são anilhados, facilmente foram identificados com o lote de soltura. Isso permitiu obter informações sobre a qualidade ambiental da área em que eles foram soltos, já que se mantiveram vivos até sua captura quase 10 meses após a ação da soltura, bem como sobre as ações criminosas de caçadores que visitam a região.
Moral da história
Obter informações precisas é um dos produtos diretos de um bom plano de contingência, pois só quando conhecemos é que podemos, de fato, empregar nossos esforços de forma efetiva para a conservação da biodiversidade. E embora alguém que nos leia possa pensar “Ah, não adiantou nada! Recuperaram três bichos enquanto milhares são mortos ou apanhados todos os dias.” Afirmo, com toda a calma, que para aqueles três, essas ações fizeram toda a diferença!
Embora não seja possível eliminar a crueldade e brutalidade humana, é possível mitigar seus efeitos.
Tudo começa com um bom planejamento e um bom plano de contingência, cujo os maiores frutos são a obtenção de dados precisos e a construção de relações sólidas entre os atores da causa ambiental e da conservação da biodiversidade.
– Leia outros artigos da coluna SEGUNDA CHANCE.
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)