Por Natalia Lima
Bióloga e analista ambiental no Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ibama em Manaus (AM)
universocetras@faunanews.com.br
Zeca é um macaco-prego que, depois de ser animador de turistas e ator, foi morar em um zoológico.
Os macacos-prego são ágeis e inteligentes. Apredem coisas que as pessoas duvidam. Estão entre os macacos preferidos como bichinhos de estimação, criados na grande maioria das vezes de forma ilegal. Eles estão também entre as espécies preferidas em entretenimentos, como filmes, comerciais, circos e, mais recentemente, Gifs.
De tão carismáticos e talentosos, alguns já até viraram astros e estrelas de cinema, mesmo que a fama tenha sido efêmera. O Zeca, por exemplo, atuou em um filme como o personagem Chico, um macaco-prego que trabalhava em um circo. Um dia, o avião em que ele viajava com sua equipe de palhaços e malabarista caiu. E onde caiu? Para ironia do destino, na Amazônia, onde, no filme, o Chico havia nascido.
No filme, personagem vivido pelo macaco Zeca se perdeu na imensidão da floresta. Nela, ele teve que aprender a se virar, a se defender dos perigos, a encontrar seu próprio alimento, a fazer novas amizades. Mas também se encontrou com suas origens ao descobrir novas paisagens, belezas, encantos, cores, cheiros e sabores, além de uma companheira e, junto a ela, o sentido de viver em liberdade. Uma estória com um final feliz, a qual o Zeca protagonizou brilhatemente. Merecedor do Oscar.
Como no filme, na vida real, Zeca, o macaco-prego ator, passou por maus bocados. Quando ainda pequeno, foi tirado da natureza e do convívio da sua família. Não esteve com seus pais biológicos, irmãos, primos, avós… Não passou sua infância a brincar pulando de galho em galho, cipó em cipó, se deliciando com os frutos, flores, bichinhos e outros alimentos saborosos e nutritivos da floresta. Também não aprendeu a bem se defender de inimigos. Zeca foi criado com uma família humana, como bichinho de estimação. Ele cresceu em cativeiro.
Quando já meio crescidinho, Zeca foi viver em uma embarcação onde, durante o dia, fizesse sol ou chuva, trabalhava posando para fotos e divertindo turistas que vinham conhecer as riquezas do tão famoso santuário Esmeralda: a floresta amazônica. Cada minuto era um flash e as fotos circulavam o mundo, ganhavam curtidas e um dia, como quimeras, eram esquecidas. Zeca não ganhava um tostão como modelo fotográfico. O dinheiro pago pelos turistas ia para seus “donos”.
Ao chegar da noite, Zeca estava sempre meio cansado. A fadiga era amenizada quando o recolhiam a seu dormitório, uma gaiola de madeira. Não era confortável nem muito arejada, mas era onde, de certa forma, se sentia em paz, embora na solidão. Era também o momento em que recorria às poucas lembranças que tinha de sua família, quando ainda vivia na floresta; um pequeno alento.
Numa bela manhã, Zeca acordou animado. Sempre que posava para fotos, ganhava alguns presentinhos dos turistas. Gostava, em especial, de balas e biscoitos; os recheados então…”Hummm, que delícia”, balbuciava Zeca em macaquês. Mas notava que sempre que as comia, tinha umas dores de barriga e lá vinham os ralhos de seus “patrões”.
Ele tinha ouvido dizer que naquela manhã chegaria um barco grande, cheio de turistas animados. Alguns com reais e outros com dólares, euros, pesos e até ienes. Zeca se animou todo. E lá foi ele para seu oficio diário, acompanhado da jiboia Juma, do jacaré Caçapa e da preguiça Soninho, que também, mesmo que a contragosto, posavam para fotos e ganhavam alguns minutos de fama nas redes sociais.
Em determinado momento, um turista ofereceu um biscoito recheado a Zeca. E era de chocolate, que ele adorava. Os olhos de Zeca se encheram tanto que pareciam saltar para fora. Mas quando se preparou para pegar o biscoito, o turista recuou e escondeu a guloseima. E depois voltou a mostrá-la e a esconder. Mostrou e escondeu várias vezes para ver as reações e expressões de Zeca, que gritava, assoviava, colocava a mão no peito, enrugava a testa, como que a implorar pelo tão desejado quitute.
Enquanto o turista se divertia, Zeca foi ficando irritado. Havia muitas pessoas em volta rindo daquela cena. Ele começou então a mostrar os dentes e a emitir sons diferentes, como que a dizer “ei, mano, você está me chateando. Me dê logo esse biscoito antes que eu perca a paciência”. De repente, em mais uma aproximação do turista, Zeca foi mais rápido e segurou a mão onde estava o biscoito. Só que ao invés de morder o petisco, mordeu o dedo do cidadão.
Foi uma gritaria, uma correria, uma histeria geral. Todos achavam que também seriam atacados pelo macaco, agora visto não mais como ”macaco maluco”.
Enquanto isso, Zeca já tinha se sossegado, saboreando aquele tão cobiçado biscoito.
Após todo aquele alvoroço, Zeca foi recolhido aos seus aposentos, onde rapidamente dormiu, tamanha a fadiga daquele dia turbulento.
Na manhã do dia seguinte, Zeca ouviu um zum zum zum… Estavam procurando outro macaco, mais novo e calmo, para substituí-lo no trabalho. De inicio, ficou contente “Que bom, vão me dar umas férias, um descanso. Pobre daquele que vai me substituir”. Mas logo percebeu o que lhe aguardava: a imensidão da floresta, para onde foi levado e deixado naquela mesma manhã.
Durante dias, Zeca vagou sem saber muito bem para onde ir e onde achar comida e companhia. Passou por vários perrengues: conseguiu escapar de uma onça e de um bando de cairaras, que o cercou provavelmente para lhe dar uma surra. Um grupo de macacos-prego também fez o mesmo, mas, por sorte, Zeca conseguiu se safar dessas emboscadas.
Numa dada manhã daquela fatídica semana, assustado, já mais magro e com muita fome, Zeca teve uma visão que o encheu de esperança: ao longe, em uma clareira, havia algumas casas. Era uma comunidade no meio da floresta. Cuidadosamente, ele se aproximou, observou… Tempos depois, entrou em uma das casas onde, tamanha a fome, foi direto para a cozinha. Não havia ninguém. “Será que estão todos fora, pescando ou roçando; na cidade em um médico ou para o rancho da semana ou do mês?” Se perguntou Zeca, que aproveitou a oportunidade e se esbaldou com tucumãs e uixis, que estavam em um paneiro, com alguns pedaços de bolo e macaxeira cozida sobre a mesa e com também alguns pedaços de frango de uma panela que estava no fogão. Nos dias seguintes, Zeca entrou em outras casas, sempre deixando seu rastro.
Aquela situação começou a incomodar os moradores da localidade, que ao descobrir o autor daqueles assaltos gastronômicos resolveram se reunir para capturar o “faminto meliante”.
Foi um “Deus nos acuda” para pegar Zeca. Sua agilidade e inteligência dificultaram a ação dos comunitários. Mas ao final, eles se lembraram do seu ponto fraco: a comida. Colocaram então seus frutos preferidos dentro de uma gaiola com armadilha. Até que um dia Zeca nela entrou ingenuamente e… lá foi Zeca novamente viver cativo.
Desta feita, os comunitários o levaram para um centro de resgate e reabilitação de animais silvestres, na cidade. Nesse centro havia muitas outras espécies e também outros macacos-prego, com quem fez algumas amizades e também encontrou alguns adversários.
A cada dia que passava, o local onde agora vivia ficava mais e mais cheio; todo dia tinha um hóspede novato, alguns dos quais Zeca nunca tinha visto ou ouvido falar. Chegavam muitos macacos-prego, mas também cairaras, barrigudos, sauins, micos, guaribas, parauacus, cuxiús, guigós, coatás, além de tamanduás, preguiças, tatus, tucanos, papagaios, periquitos, sabiás, curiós etc. Ufa, era muito bicho! Cada qual com suas histórias.
Uns tinham sido atacados por cães, outros atropelados ou eletrocutados. Outros com cicatrizes na cintura causadas por cordas que os prediam.
Havia um cairara que, pobre coitado, nem um médico ortopedista poderia resolver o que sofria, tamanho era o problema de coluna por ter passado anos da vida em uma gaiola minúscula. Antes de chegar ao centro, ele não imaginava sequer o quanto o mundo era grande; bem maior que aquele espaço onde se movimentou por anos só em círculos, deixando sequelas em sua coluna vertebral.
O cairara Paninho
Mas a história que mais impressionou Zeca foi a de Paninho, um macaquinho cairara com quem fez amizade.
Paninho, ah o pequeno Paninho. Sua história também daria um roteiro cinematográfico.
Paninho chegou ao centro de reabilitação numa manhã de setembro, alguns meses depois da chegada de Zeca. Vinha de longe. Havia partido em um avião de uma cidade à beira do rio Solimões, no interior do Amazonas, sua “cidade” natal, para a capital Manaus. Todos que o esperavam, veterinário, biólogos, tratadores e também aqueles que o haviam embarcado no avião, estavam ansiosos, apreensivos com as condições em que se encontrava, muito ferido e com a saúde muito debilitada.
Antes de vir para o centro de reabilitação na capital, Paninho vivia em uma casa. Como era muito esperto e ágil, desde muito novo era mantido no quintal, amarrado a uma corda, próximo a um muro, onde subia para mirar a vizinhança e o movimento da rua para, com isso, se distrair um pouco. A vida ali era pacata, incomparável à vida agitada e cheia de aventuras da floresta.
Num dado dia, Paninho desapareceu. Para onde teria ido? Teria fugido? Teria sido roubado?
Na tarde daquele mesmo dia, uma noticia correu a cidade: um morador havia encontrado um animal na sarjeta, inacreditavelmente, dentro de um saco de lixo. Era Paninho, que foi imediatamente entregue à policia local.
Assustados com a condição de Paninho, os policiais procuraram uma instituição que pudesse lhe prestar os primeiros socorros. Ele iniciou então uma saga, em que todos deram sua parcela de contribuição para que sobrevivesse, até que chegou às mãos de biólogos e veterinários de um instituto de pesquisas que lhe prestaram atendimento e cuidados.
A situação de Paninho não era nada boa. Os veterinários não acreditavam que havia conseguido sobreviver àquela situação. Ele estava vivo, mas inconsciente. Tinha dedos decepados e um ferimento enorme nas costas provocados por uma faca. Tinha também marcas de corda na cintura e estava muito debilitado. Precisou fazer uma cirurgia e depois passou por tratamento com antibióticos, anti-inflamatórios, soro, vitaminas…
Ao acordar, Paninho parecia um pouco melhor, embora confuso. Não entendia por que estava ali. Sequer se lembrava do que havia acontecido com ele. A última imagem da qual se recordava foi a de um homem que vinha em sua direção empunhando um facão.
Dias depois, Paninho foi encaminhado ao centro de reabilitação, onde continou sua saga e então conheceu Zeca.
Oito meses de tratamento foram necessários até que os ferimentos cicatrizassem por completo. Foi então que um dia os tratadores perceberam que ele havia se desapegado do pedaço de pano que era motivo de ele ter recebido o nome de Paninho.
Paninho passava o dia com aquele pedaço de pano sobre as costas. Se o farrapo fosse tirado dele, mesmo que para ser lavado, ele se desesperava e só se acalmava quando lhe devolviam e ele o colocava sobre as costas, para proteger seu ferimento. Paninho, de alguma forma, sabia que a ferida precisava ser protegida, do contrário atraia moscas que acarretariam em mais dificuldades à sua recuperação. Ele era muito inteligente mesmo.
Paninho e Zeca eram queridos por todos, mas assim que ambos recobraram a saúde por completo, era preciso começar a busca por um outro lar, por uma nova vida para eles.
Paninho seguiu seu rumo, indo para um mantenedor de fauna onde fez amizade com outro cairara, mais velho que ele e que também já havia passado pelo centro. Hoje, leva uma vida pacata, sossegada, longe de perigos. Lá ele é bem alimentado e tratado carinhosamente, mas creio que ainda sonha em um dia poder ir passear na floresta, parte da qual contempla diariamente da sua janela.
Já Zeca teve outro destino. Apesar de ter virado astro de cinema, atuando em um filme sobre a vida de macaco na floresta amazônica, o destino dele foi um zoológico, onde passou a viver em uma ilha, junto a outros macacos da sua espécie. Vida real diferente daquela interpretada no filme, quando viveu o Chico que lhe rendeu alguns meses de fama, mas que nunca lhe proporcionaram regalias como as dos atores de Hollywood.
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