Por Dimas Marques
Editor-chefe
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O segundo semestre não é um período crítico somente para os papagaios-verdadeiros (Amazona aestiva) que vivem no Cerrado brasileiro e são alvos dos traficantes de animais. As quadrilhas também atacam as populações de araras do bioma e do vizinho Pantanal. Filhotes de araras-canindé (Ara ararauna) já foram apreendidos em Minas Gerais. “Sem dúvida nenhuma, as araras-canindé são as mais traficadas em nossa região”, afirma a pesquisadora e presidente do Instituto Arara Azul, Neiva Guedes.
Em 14 de agosto, o Fauna News publicou “Tráfico de papagaios-verdadeiros: começou a temporada em que milhares vão perder a liberdade para se tornarem pets”. A reportagem detalhou as ações dos traficantes de papagaios no Cerrado, em especial no Mato Grosso do Sul. Há décadas, entre agosto e novembro, período reprodutivo da espécie, quadrilhas recolhem dos ninhos as aves recém-nascidas para abastecer o mercado ilegal de bichos de estimação, principalmente a demanda da Região Metropolitana de São Paulo. Das milhares de aves coletadas pelos bandidos, muitas morrem e o restante passará o resto da vida como pets.
Atuando desde 1990 na conservação da arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacinthinus) no Mato Grosso do Sul e no Mato Grosso, Neiva conhece como poucos as araras da região e sabe o potencial negativo do tráfico de animais. A captura de ovos, filhotes e adultos de araras-azuis-grandes, por exemplo, foi um dos principais fatores que levou a espécie a correr risco de extinção. O Instituto Arara Azul estima que mais de 10 mil dessas aves foram retiradas da natureza até a década de 1980.
O mesmo aconteceu com a ararinha-azul (Cyanopsitta Spixii), que infelizmente está extinta na natureza por não resistir à pressão do tráfico. A última ave da espécie em vida livre foi avistada em 2000. Atualmente, cerca de 170 ararinhas são criadas em cativeiro no Brasil, Europa e Ásia. Um trabalho para sua reintrodução até 2024 na região da caatinga de Curuçá (BA), seu habitat natural, é desenvolvido por meio do Plano de Ação Nacional para Conservação da Ararinha-azul do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Períodos reprodutivos
Assim como acontece com os papagaios, as araras também possuem períodos reprodutivos relativamente bem definidos e as aves buscam fazer ninhos nos mesmos ocos de árvores. Sabendo quando e onde encontrar suas “mercadorias”, os traficantes de animais conseguem planejar bem suas ações para a retirada de filhotes e ovos. Muitos dos bandidos que trabalham com os papagaios-verdadeiros são os mesmos que participam do comércio ilegal de araras para os centros urbanos. A exceção é a arara-azul-grande, alvo de traficantes mais especializados pelo fato de estar ameaçada, ser mais rara, ter muita procura por estrangeiros e elevado preço no mercado ilegal.
“O tráfico de araras é bem mais tímido. Não é de larga escala como o de papagaios-verdadeiros, que é aviltante”, afirma Neiva. A explicação, segundo a ambientalista, está no fato dessas aves terem menos filhotes e de os ninhos ficarem em ocos de árvores mais altos que os dos papagaios, dificultando o acesso por qualquer pessoa, e dos preços delas ser mais elevado.
Apesar de cada espécie ter suas peculiaridades reprodutivas, as araras que habitam o Cerrado e o Pantanal têm quase o mesmo período reprodutivo. Em geral, as araras-azuis-grandes e as canindé se reproduzem entre julho e dezembro e as vermelhas (Ara chloropterus) de agosto a dezembro. No primeiro mês desses períodos é quando ocorre a coleta de ovos.
Primeira apreensão de araras-canindé da temporada de 2020 já aconteceu. Às 13h30 de 12 de agosto, uma equipe da Polícia Rodoviária Federal (PRF) encontrou 43 aves da espécie dentro do porta-malas de um Siena que foi parado na Unidade Operacional da corporação no km 631 da BR-365, em Uberlândia (MG). O carro era conduzido pelo decorador de eventos Wandislay de Souza Silva, de 30 anos, que estava acompanhado de seu pai, de 69, e não tem carteira de motorista.
Aos policiais, Wandislay teria relatado ter capturado as araras em matas da região de Bom Jesus de Goiás (GO), município onde residem. As aves seriam levadas para o estado de São Paulo, onde seriam vendidas. Ele foi detido, mas acabou liberado para responder pelo crime em liberdade. Entre as 43 araras, havia adultos e filhotes, todos distribuídos em caixas de papelão. Elas foram encaminhadas para o Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ibama em Belo Horizonte.
Em 17 dezembro de 2019, Wandislay já havia sido detido com outras 20 araras-canindé. O flagrante aconteceu na altura do no Km 354 da BR-381, em João Monlevade (MG), novamente durante uma abordagem da PRF. As aves também estavam no porta-malas do Siena. Uma delas estava morta. Aos policiais, ele teria afirmado ter pego as araras em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, para levá-las até Caratinga (MG), na região do Rio Doce.
Chama a atenção o fato de que em 10 de janeiro de 2020, ou seja, menos de um mês depois, um novo flagrante envolvendo araras-canindé aconteceu na mesma rodovia, em João Monlevade. Dois homens estavam transportando, em um Versa, 43 aves, entre araras e jandaias-mineiras (Aratinga auricapilla) e 126 anilhas (anéis usados para identificar as aves) falsificadas. A dupla teria dito ter sido contratada para levar os animais de Sete Lagoas (MG) para, novamente, Caratinga.
https://youtu.be/DlvyaGkD9dM
17 de dezembro de 2019. No porta-malas do carro de Wandislay, 20 araras-canindé. Uma já morta – Imagem: Polícia Rodoviária Federal
Além do verdadeiro, outros papagaios também sofrem
“O roubo de filhotes na natureza é umas das principais ameaças para todas as espécies de papagaios.” A afirmação é da coordenadora executiva do Plano de Ação Nacional para Conservação dos Papagaios (PAN Papagaios) do ICMBio, a bióloga e coordenadora de projetos da ONG Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), Elenise Angelotti Bastos Sipinski.
Das 12 espécies de papagaios são nativas do Brasil, o PAN Papagaios trabalha com seis: o papagaio-verdadeiro, o papagaio-de-peito-roxo (Amazona vinacea), o papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis), o papagaio-chauá (Amazona rhodocorytha), o papagaio-charão (Amazona pretrei), e o papagaio-moleiro (Amazona farinosa).
O charão, o chauá e o de-peito-roxo constam na categoria “vulnerável” na Lista Oficial da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção. O papagaio-de-cara-roxa e o verdadeiro estão categorizados como “quase ameaçadas”, enquanto o papagaio-moleiro consta como “pouco preocupante” – ele entrou para o PAN pois consta em diversas listas estaduais de fauna ameaçada de extinção.
As seis espécies se reproduzem no segundo semestre. “O período reprodutivo desses papagaios é similar e o local de roubo dos filhotes são conhecidos, em áreas naturais com presença de cavidades nas árvores. Por isso, o ideal é reforçar a fiscalização nesse período em locais onde estão os sítios reprodutivos. Uma fiscalização preventiva pode minimizar a captura ilegal dos filhotes”, afirma Elenise.
Conheça um pouco das seis espécies que estão no PAN Papagaios:
– Papagaio-verdadeiro
Estado de conservação: “quase ameaçado”
Distribuição geográfica: Pantanal, Cerrado, Mata Atlântica e Caatinga. Ocorre também em outros países da América do Sul, como Argentina, Bolívia e Paraguai.
Período reprodutivo: de agosto a novembro.
– Papagaio-de-peito-roxo
Estado de conservação: ameaçado de extinção (“vulnerável”)
Distribuição geográfica: Mata Atlântica – sul da Bahia ao norte do Rio Grande do Sul -, com população estimada de 5 mil aves.
Período reprodutivo: agosto a fevereiro.
– Papagaio-chauá
Estado de conservação: ameaçado de extinção (“vulnerável”)
Distribuição geográfica: Mata Atlântica – estados do Rio de janeiro, Espírito Santos, Minas Gerais e sul da Bahia. Grupos isolados em Alagoas.
Período reprodutivo: setembro a fevereiro.
– Papagaio-de-cara-roxa
Estado de conservação: “quase ameaçado”
Distribuição geográfica: Mata Atlântica – litoral do Paraná e litoral sul de São Paulo.
Período reprodutivo: outubro a março.
– Papagaio-moleiro
Estado de conservação: “pouco preocupante”
Distribuição geográfica: Mata Atlântica – de São Paulo até o sul da Bahia – e na Amazônia. Ocorre também na Colômbia, Bolívia e Equador.
Período reprodutivo: outubro a janeiro.
– Papagaio-charão
Estado de conservação: ameaçado de extinção (“vulnerável”)
Distribuição geográfica: Mata Atlântica – Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Período reprodutivo: de agosto a setembro.
O tráfico de araras e papagaios, segundo Neiva, só terá um combate efetivo quando houver educação ambiental e envolvimento da população. Ela afirma ter conseguido a redução do problema na área onde o Instituto Arara Azul atua por causa do trabalho feito com as comunidades. “Ter a população como aliada faz com que as pessoas se tornem vigilantes. Elas denunciam”, explicou.
Elenise também considera ser fundamental investir em educação ambiental, tanto que em 2017 foi lançado o Programa Papagaios do Brasil. A iniciativa, que reúne instituições e pessoas que atuam há mais de vinte anos pela conservação dessas aves, foi uma forma de apoiar a implementação do PAN Papagaios. As ações educativas e de divulgação dos trabalhos pelas redes sociais estão entre as principais ações do grupo.
Mesmo considerando a educação ambiental prioritária, Neiva e Elenise afirmam que fiscalização eficiente e leis mais rígidas são indispensáveis. “Infelizmente, poucas pessoas s que cometem esse ilícito ficam presas”, salientou a coordenadora executiva do PAN Papagaios.
Pela legislação brasileira, como a pena prevista para quem trafica animais é de seis meses a um ano de detenção (artigo 29 da Lei nº 9.605/1998) , o crime acaba classificado pela Lei nº 9.099/1995 como de “menor potencial ofensivo”. Isso faz com que para esse delito seja elaborado um Termo Circunstanciado de Ocorrência e haja a possibilidade de ser arbitrada uma fiança ao suspeito, que em geral responderá pelo crime em liberdade.
Nesses casos, o Ministério Público também é obrigado a oferecer a possibilidade da transação penal (pagamento de multa ou realização de atividades para a comunidade) que, se aceita pelo suspeito, faz com que não haja abertura de processo judicial.
Leia também:
– Tráfico de papagaios-verdadeiros: começou a temporada em que milhares vão perder a liberdade para se tornarem pets, publicada em 14 de agosto de 2020
– Papagaios salvos do tráfico terminam seus dias como reprodutores de comerciantes, publicada em 17 de agostos de 2020