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Por Daniel Nogueira
Biólogo, especialista em Ecoturismo e analista ambiental do Ibama. É o responsável pelo Centro de Triagem de Animais Silvestre (Cetas) do Ibama localizado em Lorena (SP)
universocetras@faunanews.com.br
No trabalho em um centro de triagem e de reabilitação de animais silvestres (Cetras), temos que tomar decisões cotidianas sobre a destinação dos animais que são colocados sob nossa guarda. Gostaria de propor uma reflexão sobre a soltura como uma das estratégias de destinação de animais dos centros.
Antes, entretanto, apresento algumas premissas importantes para a nossa reflexão:
1 – A maior parte dos animais que os Cetras recebem são originados de caça ou captura ilegal na natureza ou são aqueles animais que estavam em ambientes naturais e sofreram algum tipo de agressão ou conflito e, por isso, necessitam de atendimento em um centro. Em resumo, esses animais nasceram em vida livre e viveram uma parte da vida na natureza. Mesmo os nascidos em cativeiro são animais silvestres, ou seja, que por definição têm o ambiente silvestre como habitat natural e estão preparados geneticamente, fisicamente e fisiologicamente para isso. Suas espécies não passaram pelo processo de domesticação, como os cães e gatos, por exemplo. Então, é inquestionável que o ambiente natural, as matas, campos abertos etc., são os ambientes o oikos desses seres.
2 – Seguindo na reflexão, o cativeiro é obviamente ofensivo (eticamente falando), em contraposição com a liberdade, característica dos animais de vida livre. Cabe, então, o questionamento se temos o direito de privar a liberdade de um animal sem motivos igualmente éticos.
3 – Podemos seguir com a argumentação de que é nos seus ambientes naturais que cada animal pode cumprir seu papel, seu script na teia de relações que chamamos de equilíbrio ecológico – que estando realmente equilibrada é direito constitucional de todo cidadão brasileiro. Portanto, é em liberdade que um animal silvestre tem seu valor ambiental.
Os aspetos éticos, morais e tecnicamente aceitos em uma sociedade acabam por gerar normas ou leis, que são padrões formais de ação do grupo. E foi o que aconteceu no regramento legal da destinação dos animais silvestres.
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Podemos dizer que “soltar é legal”, ou seja, é o que a lei determina. Sobre esse aspecto, a nossa colega bióloga Adriana Prestes apresentou muito bem na seu artigo para coluna Segunda Chance, publicado em 1º de fevereiro de 2021 (“Soltura tem boas práticas e tem lei”). Desta forma, em resumo, a soltura de animais silvestres aptos em seu ambiente é o que determina a lei.
Também podemos nos ater, também citado no artigo de Adriana, nos conceitos da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). Segundo essa respeitada organização civil dedicada à conservação da natureza, a soltura seria uma categoria de translocação de fauna para fins de conservação.
Sim, as solturas dos Cetras têm efeitos de conservação de fauna silvestre. Contudo, estariam os centros na condição de escolha entre “soltar” ou “não soltar” como regra geral dentre as suas decisões cotidianas?
Diante das premissas apresentadas, partimos agora para o campo da realidade, da prática. Nos Cetras, é importante termos a coragem de fazer a seguinte afirmação: vai haver soltura de animais recebidos pelos centros! Esse é um fato.
A soltura é condição obrigatória porque é a ação mais correta, ética e legal. A ação de soltura não é simplesmente uma decisão acadêmica de manejo. Não é uma ação que simplesmente se decidiu pela única razão da conservação da fauna; embora tenha esse efeito. Por definição, a IUCN considera a translocação como “o movimento de organismos vivos de uma área de origem para soltura em outra, mediado por seres humanos”.
Mas a soltura realizada pelos Cetras é mais que uma translocação, como definiu a IUCN. É restituição. Restituição ou devolução para os lugares de direito e de fato. Para os animais recebidos pelos Cetras, o movimento inicial, condição da translocação, foi iniciado fora do centro pela ação ilícita da caça ou pelas condições de conflito que produziram o movimento do animal pela necessidade. Por razões legais, técnicas e éticas já apresentadas aqui, cabe aos Cetras a restituição, a devolução para o estado inicial. Vale ressaltar, nesse caso, que a restituição não deve ser considerada limitadamente como para o exato local de onde o animal adveio, porque isso é quase sempre desconhecido, mas deve ser encarada, pelo ponto de vista ecológico, para o estado natural, o ambiente silvestre, a região de ocorrência natural da espécie.
A soltura é tão equivalente para a gestão dos Cetras quanto se alimentar é para a gestão da sobrevivência de uma pessoa. As duas são obrigatórias. Isso não quer dizer que a obrigatoriedade do ato de se alimentar não possa ser qualificado e aperfeiçoado no que tange aos procedimentos, quantidades e tipos de alimentos. É imprescindível se alimentar, mas é necessário saber como se alimentar bem.
Fazendo uma transposição por analogia, para um Cetras é imprescindível soltar. Mas é necessário saber como se solta bem os animais, ou seja, de maneira correta. E é essa a busca mais recorrente e cotidiana de um centro de triagem e de reabilitação de animais silvestres. Fazer corretamente o que se tem que fazer.
E para os órgãos de controle dos Cetras, ou seja , os órgãos públicos, cabe construir junto com os Cetras o “fazer soltura” de maneira correta, mas de maneira que não inviabilize o fazer. A busca pelo “fazer soltura” de maneira correta não pode pressupor o não fazer, da mesma forma que a busca pela melhor alimentação não pode pressupor alguma situação de “não se alimentar”. O “não se alimentar” nunca vai ser melhor que se “alimentar mal” ou desregradamente.
Para uma avaliação de uma pessoa de fora, do público leigo, pode parecer óbvio que quando um animal que está fisicamente bem, sem mutilações incapacitantes e com o comportamento “normal de bicho”, ele deva ser reintegrado ao seu natural, ou seja, que seja solto. Contudo, é importante lembrar, para quem não sabe, que os profissionais dos Cetras enfrentam questionamentos externos constantes, na maioria das vezes, sobre esse assunto, em situações semelhantes a ataques messiânicos.
Em outras palavras, é comum a crítica a soltura, não só pela forma, mas também pelo espírito. Ou seja, é comum sofremos críticas quanto a forma que soltamos animais, mas também simplesmente porque soltamos. Muitas vezes as críticas, abertas ou quase sempre veladas, acabam por informar nas entrelinhas que o melhor mesmo seria não soltar.
Ocorre, também, a criação de protocolos e regras unilaterais que são propostas no calor da preocupação pela correção do ato, mas que quase sempre acabam por inviabilizá-lo. Lembrando que tais protocolos, sem que se avalie seu mérito e correção, sempre se relacionam com o acréscimo de recursos financeiros, humanos e materiais, incrementam o tempo de espera para a soltura e os passos na rotina de manejo dentro de Cetras. E quando tais normas e protocolos obrigatórios são propostos, frequentemente não vem acompanhados desses acréscimos necessários (financeiros, materiais, humanos e temporais).
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Por questões óbvias, a regra inviabiliza ou dificulta enormemente o ato regulado, pois não se relaciona pragmaticamente ao ato e só se relaciona ao objetivo. A regra, na maioria das vezes, quando obrigatória, tem o objetivo de propor uma soltura correta (continuamos a não criticar o mérito), mas não se relaciona com a sua aplicabilidade, dessa forma inviabilizando a própria ação regulada.
Seguindo a analogia, tais normas e protocolos acabam por gerar uma situação análoga a um pai que, por medo de um filho se alimentar mal, manifesta uma regra ou determina proibições cujo cumprimento priva-lhe de alimento ou o impede de se alimentar.
Temos que ter a coragem de afirmar que normas e protocolos obrigatórios para soltura, que não venham acompanhados pelas condições totais de aplicação, ou seja, que são inexequíveis, são naturalmente letra morta, pois causam um mal maior do que aquele que se tenta ou se propõem combatê-lo. Acabam figurando na possibilidade de “curar a doença matando o paciente”.
O fazer certo é uma construção, um conhecimento técnico, uma prática que deve ser tomada por todos, sem paixões radicais e com respeito por aqueles que fazem porque têm o dever de fazer.
Dessa forma, o fazer certo deve ser construído, refletido em parceria com toda a sociedade de maneira conjunta e construtiva. O jeito de fazer deve ser construído coletivamente, contudo sem perder o conceito da necessidade de soltar.
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