Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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No Brasil, o 12 de outubro é uma das datas mais importantes do calendário, pois reúne festejos de grande significado cultural: o Dia das Crianças e o Dia de Nossa Senhora Aparecida. Nossa Senhora é um dos interessantes casos em que a admiração à entidade transcende a questão da religiosidade. Maria, mãe de Jesus, é querida e admirada por todos, mesmo por aqueles que não professam a fé católica, mesmo por aqueles que sequer seguem alguma religião.
Talvez porque Nossa Senhora seja uma das personalidades mais humanas, um verdadeiro “coração de mãe” na acolhida a todos os seus filhos. Como resultado disso, conforme ensina a sabedoria popular, se você quiser uma graça divina, deve pedir à Maria, pois ela irá intermediar com todo o carinho – carinho de mãe. A cultura popular é plena em mostrar essa afetividade mariana, como bem fez Ariano Suassuna em O Auto da Compadecida. As diferentes versões de Nossa Senhora são celebradas pelo Brasil a dentro, como o famoso Círio de Nazaré, no Pará, e a Procissão de Nossa Senhora dos Navegantes, na Bahia, verdadeiros eventos que vão além da religião e se tornam legítimas manifestações da cultura popular. Como o é o Dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.
Tenho formação católica, religião que deixei de seguir desde que passei a ter voz ativa na minha vida e, desde então, não abracei qualquer religião. Mas Nossa Senhora me é muito cara, pois, além de sua humanidade (ou, talvez, exatamente devido à sua humanidade), ela tem muita ligação com os animais. Ligação essa que aparece tanto nos relatos bíblicos sobre a Anunciação, o Natal e a Páscoa, quanto nos causos. Jumento, boi, camelo, galo, animais domésticos em geral e outros bichos aparecem junto à Maria nas escrituras e nas obras de arte derivadas [1], mas são as estórias populares, aquelas que contrariam a geografia e colocam Nossa Senhora no caminho de bichos brasileiros, como o gambá [2], o bem-te-vi e a viuvinha [3], que são verdadeiramente deliciosas. E algumas incluem insetos.
Muito associada à Nossa Senhora é a joaninha (Coleoptera: Coccinellidae), inseto considerado como um presságio de sorte. Em Bragança, Portugal, o bonito besourinho é conhecido como pita-de-nossa-senhora [4]; na Alemanha, é Marienkafer (besouro de Maria); nos Estados Unidos e na Inglaterra, é ladybird (ave da Nossa Senhora) ou ladybug (inseto de Nossa Senhora) [5] [6]. Nossa Senhora era frequentemente retratada nas primeiras pinturas artísticas usando um manto vermelho e as manchas da joaninha-de-sete-pintas, Coccinella septempunctada, a mais comum na Europa, simbolizam as sete alegrias e sete dores de Maria [6]. Segundo uma lenda medieval, em certa época ocorreu uma grande infestação de pragas agrícolas e, em desespero, as pessoas rezaram pela intercessão de Nossa Senhora. Logo depois, houve uma explosão populacional de joaninhas, que predaram as pragas e salvaram as plantações, sendo esses insetos associados à mãe de Jesus [7].
Capazes de dar uma picada muito dolorosa, as formigas-feiticeiras (Hymenoptera: Mutillidae) são vespas com aparência de formiga, sendo geralmente pretas ou vermelhas, aveludadas e com vistosas manchas vermelhas, amarelas ou brancas. São conhecidas por uma série de nomes comuns, como formiga-oncinha, filho-de-onça, formiga-cascavel, dentre muitos outros. Porém, o mais curioso é cachorrinho-de-nossa-senhora, nome pelo qual o inseto é conhecido no interior da Bahia [8]. Não encontrei referências ao motivo dessa inusitada associação com Nossa Senhora. Talvez seja pela coloração, muitas vezes em vermelho e preto, eventualmente podendo lembrar, bem de longe, o padrão das já mencionadas joaninhas. Ou por ser usada em simpatias amorosas, conforme já mencionado neste espaço [9].
Também as formigas verdadeiras, igualmente integrantes da ordem Hymenoptera só que pertencentes à família Formicidae, têm interessantes ligações com a santa. O Monte delle Formiche (Monte das Formigas) é um relevo pertencente aos Apeninos bolonheses médios, ocupando parte do território dos municípios de Pianoro e Monterenzio, na Itália. O curioso nome da montanha está ligado a um fenômeno que anualmente lá ocorre: por volta do dia 8 de setembro, dia da festa local de Nossa Senhora, a quem é dedicado um santuário no topo da montanha, enxames de formigas Myrmica scabrinodis chegam ao cume e morrem ali. Há evidências desse fenômeno natural que remontam à Idade Média, visto que no século XV a igreja se chamava Santa Maria Formicarum. Assim, ao longo do tempo, foi conferido à revoada de formigas um valor quase milagroso, uma espécie de homenagem da natureza à Nossa Senhora [10]. Já aqui no Brasil, um vídeo está chamando muita atenção nos meios católicos, pois mostra uma formiga-saúva carregando uma medalha de Nossa Senhora das Graças [11].
Uma terceira ordem de insetos costumeiramente associada à Maria, mais especificamente à própria Nossa Senhora Aparecida, é a dos Lepidoptera, a das borboletas e mariposas. Uma delas, em especial, é conhecida como borboleta-nossa-senhora: Junonia evarete (Nymphalidae), também popularmente chamada de olho-de-pavão-diurno. Quando a borboleta está em repouso e com as asas arriadas, muitos conseguem ver um desenho, formado pelo corpo e asas posteriores, que lembra a tradicional imagem de Nossa Senhora Aparecida [12].
Mas nem só de borboletas vive a fé. As mariposas também são filhas de Deus! Ou melhor, de Maria. Em 2020, em plena pandemia de Covid-19, circulou nas redes sociais um vídeo mostrando a equipe de um hospital em oração, isso após os presentes notarem nas asas do inseto um desenho que lembra a imagem de Nossa Senhora Aparecida, de modo semelhante ao contado acima sobre a borboleta. A situação, como ocorre com muitas postagens nas redes sociais, foi atribuída a vários hospitais de diferentes cidades. O fato é que isso ocorreu no Hospital Municipal Quitéria Alves Vilela, em Capoeiras, Pernambuco, no dia 7 de abril e, segundo testemunhas, a mariposa (provavelmente um Noctuidae), teria aparecido na emergência da unidade quando os funcionários conversavam sobre o novo coronavírus [13].
De fato, mariposas pertencentes a outras famílias também assumem um formato triangular quando em repouso. Assim, espécies de Erebidae, Saturniidae e Sphingidae costumam ser exaltadas na internet pela suposta semelhança com a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Todos esses grupos de mariposas têm mais um ponto em comum: eventualmente são chamadas de bruxa.
Chega-se a um ponto interessante. Se, por um lado, Nossa Senhora tem ligação cultural com dois dos poucos grupos de insetos com representatividade social positiva (joaninhas e borboletas), por outro também está associada às bruxas e feiticeiras, por meio das mariposas e formigas-feiticeiras. Com relação a essa última percepção, é fascinante notar que ambas as representações são formas de exaltação a sabedoria, força e poder femininos, embora de modos diferentes, quase que como duas faces da moeda. Que bom que os insetos estão envolvidos nisso.
Aos que têm interesse pelos estudos sobre a representação animal nas manifestações culturais, fica aqui o convite para que participem do Colóquio de Zoologia Cultural, cuja sexta edição ocorrerá nos dias 11 e 12 de dezembro de 2021. Detalhes do evento, incluindo as regras para submissão de trabalhos, podem ser obtidas na revista A Bruxa. Para saber um pouco mais sobre o estilo dos trabalhos que costumam ser apresentados no evento, a dica é olhar a última edição, realizada no ano passado e que está integralmente disponível no YouTube.
Referências
[1] https://www.youtube.com/watch?v=CDYuoTW36VU&list=PLVk9Yf7CmhR0atKoXPcoJd9iZ_dqzolTa&index=36
[2] Coelho, Luci B.N. 2019. Gentileza gera gentileza: o dia em que Nossa Senhora agradeceu a um marsupial, p. 87-88. In: Coelho, L.B.N. & Da-Silva, E.R. (ed.). IV Colóquio de Zoologia Cultural – Livro do evento. A Bruxa 3 (especial): 1-163.
[3] https://www.youtube.com/watch?v=tZrlo2_Cqus&t=1079s
[4] Pérez, Álvarez & Afonso, Xosé. 2011. A joaninha era de Nossa Senhora: designações açorianas no campo lexical da fauna. In: O Faial e a Periferia Açoriana nos séculos XV a XX – Actas do V Colóquio. Faial: Núcleo Cultural da Horta, p. 401-423.
[5] https://brasilescola.uol.com.br/animais/joaninha.htm
[6] https://www.guiadoscuriosos.com.br/animais/por-que-as-joaninhas-sao-chamadas-de-besouro-de-nossa-senhora/
[7] https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/horoscopo/por-que-a-joaninha-e-um-simbolo-da-sorte-descubra,2dec7c06b27128fc63164ed676f45af3pun0s7ik.html
[8] Lenko, Karol & Papavero, Nelson. 1979. Insetos no folclore. São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 520 p.
[9] https://faunanews.com.br/2021/08/18/insetos-no-folclore-brasileiro-o-talisma-da-coruja-e-outras-estorias/
[10] https://it.wikipedia.org/wiki/Monte_delle_Formiche
[11] https://pt.aleteia.org/2021/09/06/formiga-carrega-medalha-milagrosa-e-coruja-danca-na-igreja-sinais-do-ceu/
[12] https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/terra-da-gente/noticia/2021/02/04/conheca-a-borboleta-que-lembra-a-imagem-de-nossa-senhora.ghtml
[13] https://www.cbnrecife.com/artigo/em-hospital-mariposa-e-comparada-ao-manto-de-nossa-senhora-e-motivo-de-reza
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