Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Em continuidade às informações sobre o boto-vermelho já apresentadas em artigos anteriores aqui no Fauna News, tais como a captura direcionada para uso como isca e a captura acidental, a moratória da pesca da piracatinga estabelecida em 2015 devido ao uso do boto-vermelho e de jacarés como isca na pesca desse bagre necrófago e sua extensão por mais um ano, comentarei agora sobre outra grave ameaça a esses golfinhos: o barramento de rios na Amazônia para fins hidroelétricos e para irrigação.
Usinas hidrelétricas (UHE) são obras de engenharia que aproveitam a energia hidráulica existente nos rios e na força das águas para gerar energia elétrica. Embora essa eletricidade seja considerada uma energia renovável, limpa e sem emissão de poluentes na atmosfera, as usinas que a produzem são responsáveis por diversos impactos ambientais irreversíveis como destruição de ecossistemas, extinção de espécies da fauna e da flora e alagamento de grandes áreas afetando comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas afastadas de centros urbanos. Esses impactos criam problemas sociais e ambientais profundos nessas comunidades tradicionais e na fauna e flora das quais elas dependem.
Na Amazônia, as barragens para produção de energia elétrica sempre foram um grande problema, principalmente devido às grandes áreas de inundação dos reservatórios e ao enorme impacto ambiental gerado por essas mega construções. As barragens provocam drásticas alterações nos rios e em suas margens, reduzindo o fluxo de água e alterando sazonalmente as fases do regime hidrológico, não só a jusante (na direção da foz), mas também a montante (na direção da nascente) da barragem, alagando permanentemente áreas de florestas e de igapós. O rio passa de lótico (com fluxo de água constante) para lêntico (com pouco ou nenhum fluxo), as corredeiras e as cachoeiras são eliminadas reduzindo a correnteza, aumentando a temperatura e, muitas vezes, alterando os sedimentos na água. Essas modificações ambientais afetam toda a cadeia produtiva aquática, reduzindo, ou até mesmo eliminando, a diversidade de espécies-presas e de organismos que servem para sua alimentação, e bloqueiam as rotas migratórias desses animais. O ambiente lêntico favorece a proliferação das plantas aquáticas, que, em muitos casos, ocupam a superfície do reservatório, aumentando a evapotranspiração e a consequente redução do nível da água e impedindo a penetração de luz.
Essas alterações ambientais têm grande impacto sobre os golfinhos fluviais, tanto o boto-vermelho (Inia spp) quanto o tucuxi (Sotalia fluviatilis). Além da redução das espécies-presa usadas na alimentação, as barragens também promovem a fragmentação da população de golfinhos em subpopulações geneticamente isoladas e impedem a movimentação dos animais (migração e dispersão).
Com a crescente demanda por energia e o abundante potencial hidrológico disponível, os projetos hidrelétricos estão aumentando rapidamente na região amazônica. Só na Amazônia brasileira existem 91 barragens planejadas que, se construídas, inundariam 10 milhões de hectares, ou cerca de 2% da região da Amazônia Legal e cerca de 3% da porção brasileira da floresta amazônica. Somando-se a esses projetos, 74 barragens estão em operação e 31 em construção, totalizando 106 barragens.
Os botos são muito dependentes dos habitat das margens dos rios e da floresta inundada. Sua biologia e comportamento reprodutivo estão fortemente relacionados com a sazonalidade do nível das águas. Em 1986, um workshop realizado em Wuhan (China) sobre a conservação dos botos de rio já apontava os problemas causados pela obstrução de cursos d’água para esses golfinhos e listava os principais problemas causados por essas obstruções. Botos podem ser encontrados acima ou abaixo de corredeiras de 83% das barragens hidrelétricas em operação no Brasil. Em 13 reservatórios de usinas hidrelétrica em rios da Amazônia brasileira há populações fragmentadas de botos: Tucuruí, Lageado, Cana Brava, Peixe Angical, São Salvador e Serra da Mesa, no rio Tocantins; Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira; Balbina, no rio Uatumã; na UHE de Samuel e em Coracy Nunes, no rio Araguari (Amapá). No rio Jamari, em Rondônia, a presença de botos ainda não foi confirmada embora existam registros a jusante da barragem.
Uma nova espécie de boto (Inia araguaiaensis) foi recentemente descrita e já está ameaçada na bacia do rio Tocantins-Araguaia. O Tocantins foi um dos primeiros rios a ser represado na região. A UHE-Tucuruí foi fechada em 1986, isolando a população de botos dessa bacia da população do rio Pará e bloqueando seu acesso ao estuário do Amazonas. Ao longo do rio Tocantins foram construídas e encontram-se em operação sete barragens e mais quatro estão planejadas. Essa série de barragens fragmentou a população de botos do rio Tocantins-Araguaia em várias pequenas unidades. Nossos levantamentos dentro dos reservatórios das barragens de Serra da Mesa e Lageado (LAM) encontraram pequenos grupos isolados de botos, mas nenhum estudo de monitoramento está atualmente sendo realizado.
Não há informações sobre os limites de Inia araguaiaensis e Inia geoffrensis no estuário do rio Tocantins, abaixo da barragem de Tucuruí. Análise genética de animais encalhados perto de Soure, na Ilha do Marajó, sugere que seja Inia araguaiensis a espécie naquela área. Esse resultado indica que a barragem de Tucuruí fragmentou a população do boto-do-Araguaia, separando uma população maior a montante da barragem e uma outra bem menor a jusante.
Outro rio extremamente importante para a região e para os botos é o Madeira, um dos maiores afluentes da bacia Amazônica. Até recentemente, existia uma série de 18 corredeiras consideradas uma barreira entre Inia geoffrensis e Inia boliviensis. Com a construção de duas grandes barragens (UHE de Jirau e de Santo Antônio), iniciada em 2013, e o enchimento do reservatório, ocorreu o alagamento das corredeiras e cachoeiras e a fragmentação da população de botos naquele rio.
A UHE de Balbina foi criada para fornecer energia renovável à cidade de Manaus, anteriormente abastecida com usinas a carvão. Localizada no rio Uatumã, alagou uma gigantesca área de cerca de 4.438 km2. Ao final de sua construção, em 1989, essa usina não tinha capacidade de gerar energia suficiente para a abastecer a cidade.
Balbina foi considerada o maior desastre ambiental da década. Isso devido a desproporção da área inundada em relação ao potencial energético produzido de apenas 250 megawatts, pela enorme perda de floresta, pelo alto número de animais mortos e pelo alto custo social. O território de famílias tradicionais e cerca de 2.928,5 km² de terras anteriormente ocupadas pelos índios Waimiri-Atroari foram totalmente inundados. Além de pouca profundidade, alcançando no máximo 7,4 m, o reservatório não teve a cobertura vegetal original removida, criando extensa área de árvores mortas conhecidas como “cacaia” ou “paliteiro”. Balbina é o exemplo de que nem sempre uma usina hidrelétrica é uma boa opção.
É possível observar botos a jusante da barragem, embora diversas espécies de peixes tenham desaparecido do rio, no trecho abaixo da barragem e no reservatório. Um grupo de boto-vermelho que ficou isolado no reservatório, após o fechamento da barragem, está sendo estudado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), com o apoio da Associação Amigos do Peixe-boi (AMPA).
A energia elétrica produzida pelas UHE construídas nos rios da Amazônia beneficia grande parte da população humana que se encontra em centros urbanos e distantes centenas de quilômetros do local de geração dessa energia. Na sua maioria, os consumidores dessa energia não têm noção dos impactos ambientais e sociais gerados pela construção das barragens e usinas e da sua transmissão, através de linhões que atravessam grandes extensões de florestas desmatadas até chegarem ao seu destino – a sua casa.
O uso racional e consciente dessa energia precisa ser estimulado e praticado por todos para que não seja necessário a construção de mais barragens na Amazônia. Por menor que seja, e mesmo com a melhor tecnologia, os impactos ambientais dessas obras são irreversíveis. Os mamíferos aquáticos e todos os organismos dos rios da Amazônia, assim como os povos tradicionais, dependem desses curso d’água saudáveis para a sua sobrevivência.
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