Por Ana Júlia Cano
Coordenadora de Comunicação da SAVE Brasil. Nasceu em Campinas, mora em São Paulo e passarinha desde 2018
observacaodeaves@faunanews.com.br
Observar aves pode contribuir para a conservação das espécies. Isso provavelmente você já leu aqui nesta coluna do Fauna News. Mas como é que isso acontece na prática? Como é que a ação dos observadores pode contribuir efetivamente com a conservação? O caso do aracuã-guarda-faca é um bom exemplo de como o trabalho em rede, a ciência cidadã e a articulação institucional podem efetivamente ajudar as espécies.
Era uma vez o noroeste paulista, gigante pólo monocultor do estado de São Paulo. Entre grandes plantações e rios represados, fragmentos tímidos de mata se revelam no mosaico aéreo da região.
Daqui de cima, como um drone, saímos dessa imagem satélite e vamos descendo até nos aproximarmos dessas ilhotas florestais. E lá encontramos os protagonistas dessa história: os observadores da natureza Dina, Juscelino e Márcia, e o velho conhecido deles, o aracuã-guarda-faca.
Cena 1: a paixão por observar aves e a Ciência sendo feita
A data: 23 de outubro de 2011. Esse era mais um dia de passarinhada para Dina, moradora do noroeste paulista e observadora de aves apaixonada. Nessa data, Dina fez um clique do que parecia ser um aracuã-pintado no município de Guapiaçu (SP). Como de costume, a observadora subiu a foto clicada no portal de ciência cidadã WikiAves. E é aí que começamos a descobrir que esse não tinha sido um dia nem um clique qualquer. O registro feito por Dina nessa localidade jogou novamente o bicho fotografado nos holofotes da Ciência: isso é um aracuã-pintado?! Se parece mais com um aracuã que ocorre na Amazônia. Mas em meio ao noroeste paulista?! Não. Tratava-se da subespécie Ortallis guttata remota. Será ela uma subespécie mesmo ou então uma espécie?
Discussão vem, discussão vai, artigos vêm e concluiu-se que sim, esta é uma espécie endêmica (que só existe em uma região) do noroeste paulista. E, sim, no dia 23 de outubro de 2011 Dina foi responsável por clicar a primeiríssima fotografia do aracuã-guarda-faca na natureza e por fomentar o debate que culminou na descrição desta nova espécie, garantindo assim a possibilidade de trabalharmos pela sua conservação. Dina segue fazendo registros fotográficos e subindo a maioria deles no Wikiaves toda vez que encontra seu velho conhecido aracuã-guarda-faca pelas bandas do noroeste de São Paulo.
Cena 2: a observação de fundo de quintal e a ciência por trás de um nome popular
Agora estamos no momento temporal em que o tal aracuã já existe enquanto espécie, mas ainda não tem um nome brasileiro, apenas a distante versão em latim – e com itálico, por favor: Ortalis remota. Em 2018, um censo começa a ser realizado pela SAVE Brasil com o apoio da Fundação Grupo Boticário para estimar a população da espécie. Saídas de campo para encontrar indivíduos do bicho se iniciam. Em meio às andanças, conversas com moradores da região acontecem. Conversamos com um deles, seu Juscelino. Do fundo de seu quintal, ele conta que conhece sim o tal do bicho que estamos procurando, pois acontece de aparecer sempre ali mesmo, uma ave semelhante. Mas seu Juscelino se lembra mais é da conversa dos bichos do que da cara deles. Segundo ele, vira e mexe acontece o seguinte diálogo:
— Guarda faca vovô! — Diz o primeiro aracuã. Ao que o segundo responde:
— Tá na cara que eu vou! — E repete-se esta sequência várias e várias vezes.
A reprodução do diálogo onomatopeico dos bichos, captado com precisão pelos ouvidos de seu Juscelino e registrado em sua memória, nos foi passada com atenção como um sábio ensinamento de quintal. A ciência por trás do nome estava posta e não sobraram dúvidas: o nome popular do Ortalis remota passou a ser aracuã-guarda-faca e a possibilidade de verbalizá-lo em praças, passarinhadas, aos vizinhos e a leste, oeste, norte e sul estava aberta!
Cena 3: Sem as pessoas não há conservação
A AES Brasil, empresa de energia elétrica muito presente no noroeste paulista, se interessa em conservar as espécies da região, não apenas o aracuã-guarda-faca, mas também o incrível mutum-de-penacho, espécie já rara no estado de São Paulo por conta da perda de habitat – restam-lhe apenas as ilhotas verdes fragmentadas. Em 2019, a AES oferece apoio à SAVE Brasil para executar o trabalho de conservação dessas aves na região e surge o Projeto Mutum-de-penacho. Mas a AES Brasil sozinha não conserva e a SAVE Brasil sozinha também não. Nós precisamos de pessoas como a Márcia, moradora do município de Mira Estrela. Márcia conheceu o nosso projeto e, desde então, sempre que avista um mutum ou um aracuã, nos envia registros feitos com o câmera do celular reportando o avistamento. E assim conseguimos acompanhar a frequência das espécies, onde ocorrem, em quais momentos, e reunir dados consistentes para avaliar a situação de conservação dos bichos e traçar direcionamentos possíveis para protegê-los.
Mas o desafio é grande. Somando 10 municípios da região noroeste, temos um déficit de áreas de proteção permanentes (APPs) de 14.290 hectares – ou seja, 62% a menos de áreas de mata preservada do que a região deveria ter. Mas com a articulação de moradores observadores, SAVE Brasil e AES Brasil, é possível trabalhar para proteger as espécies da região e restaurar o habitat delas, mudando a paisagem local. Nós acreditamos no poder das iniciativas conectadas para transformar paisagens fragmentadas. E você, acredita?
– Leia outros artigos da coluna OBSERVAÇÃO DE AVES
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)