Por Reginaldo Cruz
Graduado em Administração e em Ciências Biológicas, é associado da Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes (REET Brasil) e sócio-administrador da Cruzeiro do Sul Consultoria Ambiental Ltda.
transportes@faunanews.com.br
A realização de estudos de fauna, relacionados ao licenciamento ambiental no Brasil, movimenta um volume significativo de recursos todos os anos. É um negócio bastante lucrativo, ao menos para algumas grandes empresas do setor.
Não tenho aqui, por objetivo, “vilanizar” a busca pelo lucro, mas sim o fato de a realização de estudos ter se tornado um negócio cujo objetivo fundamental, quando não único, é a obtenção de lucros.
É fundamental que esse alto volume de recursos investidos traga, além dos lucros, resultados importantes para a conservação da fauna, para a segurança dos usuários do projeto em questão, para a preservação ou melhoria da qualidade de vida de comunidades afetadas, para a otimização da alocação de recursos durante a implantação do projeto, entre outros.
Estudos de fauna para ferrovia
Tratando aqui, especificamente, dos estudos de fauna para desenvolvimento da malha ferroviária, preocupa-me muito o fato de os atores envolvidos seguirem pautando suas ações na solicitação, proposição ou realização de estudos baseados em inventários de fauna.
Já abordei esta questão em outros artigos aqui no Fauna News e me parece, ao conversar com diferentes atores envolvidos nesses processos, que a questão está pacificada: inventário não traz os resultados esperados/necessários para a tomada de ação efetiva no sentido, não só de conservação de fauna, como também de orientação de projeto, orientação de alternativa de traçado, etc. No entanto, questões como a necessidade de segurança jurídica, a falta de capacitação técnica das equipes, a pressão política, os prazos reduzidos e os recursos financeiros e de pessoal limitados, seguem impelindo os estudos nesse mesmo e inócuo sentido.
A questão é complexa, mas ao menos em relação aos prazos e recursos, entendo que a possibilidade de avançarmos é imediata.
Como expus no artigo “Desafios na definição de áreas para monitoramento de fauna em ferrovias”, publicado aqui no Fauna News em 24 de novembro de 2022, estou coordenando o monitoramento de fauna durante a fase de construção de uma ferrovia de grande porte no Brasil central. As campanhas são semestrais, mas o prazo é curto, já que o contrato é de 18 meses, e os recursos financeiros limitados, pois a contratante venceu a licitação pelo menor preço.
Neste momento, apesar de conseguirmos romper com o desenho baseado em inventário, que foi aplicado durante os primeiros oito anos de monitoramento e na elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), estamos ainda trabalhando com vários grupos-alvo de fauna. Nossa intenção principal é identificar quais grupos têm potencial de fornecimento de respostas quanto à relevância e à localização dos impactos, para nortear a sequência do estudo – ele irá seguir, enquanto a obra não for concluída, não necessariamente conosco.
Não se trata de hierarquizar grupos-alvo em níveis de importância, mas de priorizar os esforços nos estudos que envolvem grupos com maior potencial de fornecimento de respostas no curto prazo.
Tecnologias em estudo de fauna
E como eu já havia antecipado no artigo anterior, de 24 de novembro de 2022, a rádio telemetria se apresenta como uma solução fantástica nesse sentido. Por ser aplicada apenas numa pequena fração da mastofauna (no nosso caso, nos mamíferos predadores de médio porte), apresenta um custo bem superior ao aplicado em estudos para frações mais amplas de outros grupos, como a ictiofauna ou a avifauna associada ao sub-bosque. Mas com resultados positivos obtidos quase imediatos e de uma aplicabilidade ímpar.
A realização de um levantamento prévio de uso dos hábitats, com utilização de armadilhas fotográficas e buscas ativas, e uma equipe técnica em campo muito focada e ciente dos objetivos do estudo, vem garantindo excelentes resultados.
As imagens a seguir, que apresentam a interligação sequencial entre pontos de coleta de localização, por colar de rádio telemetria, de dois indivíduos monitorados durante dois meses, ilustram o grande potencial deste tipo de estudo.
A imagem no alto da página mostra a atividade de um cachorro-do-mato monitorado. Trata-se de uma espécie que costuma ocupar e, muitas vezes, se beneficiar da presença de ambientes periantrópicos. Nesse caso, percebe-se que seus deslocamentos se dão, sobretudo, sobre ou paralelos à via.
Já a imagem abaixo mostra a atividade de um gato-do-mato, que apresenta maior especificidade de hábitat e aparenta evitar o leito da via, com sua movimentação concentrada em área de mata ciliar.
Esses indivíduos continuam sendo alvo do monitoramento (estão portando colares e nossa equipe segue perseguindo-os, buscando a recaptura para remoção do colar e recuperação dos dados, ou ao menos novo download remoto de dados, já que o colar irá cair por desgaste em pouco tempo), além de outros, cujos dados já estão sendo coletados e começarão a ser analisados nas próximas semanas.
As imagens disponíveis no Google Earth são relativamente antigas (2018). Mesmo que fossem recentes, não dispensariam uma excursão a campo com utilização de drone para exploração destes ambientes e avaliação de preferências das espécies. Com base nos dados de utilização preferencial de hábitats e na avaliação dos trechos preferenciais para travessia da via (que características de relevo, vegetação, engenharia de construção estão ali presentes que favorecem o uso? Quais atrativos há na fração da área de vida oposta à via para que a travessia seja realizada? As travessias são realizadas em horários preferenciais?) podemos, no curto prazo, indicar medidas de conectividade ou de barreira com maior acurácia.
A partir da análise da paisagem utilizada, poderemos propor a implantação de medidas de direcionamento da fauna (caso tenhamos ali uma passagem subterrânea) ou de barreira, e avaliar o comportamento dos indivíduos com a presença das medidas para orientar proposições futuras, em trechos com características similares.
Além disso, na medida do possível, pode-se inserir a avaliação do comportamento de diferentes grupos-alvo na comparação entre trechos com medidas e trechos sem medidas.
Portanto, não se trata aqui de propor que grupos sejam negligenciados. Trata-se de otimizar o uso do recurso, alocando-o em estudos com maior potencial de obtenção de subsídios para a conservação da fauna mais sensível.
Na nossa ânsia de abraçar o mundo, inventariando todos os grupos de vertebrados, não obtemos informações realmente importantes e, consequentemente, reduzimos a probabilidade de que salvemos alguém ou alguma população da morte ou da extinção local.
A limitação imposta pela escassez de recursos pode ser a via, tão necessária, para a otimização dos estudos.
– Leia outros artigos da coluna FAUNA E TRANSPORTES
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)