
Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Amigo leitor, certa vez ouvi de uma técnica da velha guarda que animal bom é em vida livre, intocada (imagino onde será esse lugar…), ou em zoológico e criatório. E ainda, que animal resgatado só teria esses destinos ou a eutanásia e que esse pessoal que quer fazer soltura quer mesmo é “pegar bichinho”.
Como venho insistindo repetidas vezes, soltura é um negócio muito sério, feito com planejamento, reabilitação e monitoramento pós soltura – ou pelo menos deveria ser! E nesse sentido, animais domésticos soltos são os maiores inimigos da fauna silvestre, em especial para os silvestres que ficam mais mansos em decorrência de passarem longos períodos em reabilitação e são soltos. Mas como já contei aqui, mesmo os silvestres que estão em vida livre são atacados por domésticos, como os veadinhos (Mazama sp), espécies muito afetadas pelo ataque de cães, assunto de um artigo do ano passado.
Pois bem, nossa história começa em uma sala de atendimento de uma clínica veterinária, em uma cidade brasileira qualquer. A cena se passou assim: veterinária com voz tensa diz: “manda chamar o pessoal do cachorro grande”. Entra em cena um senhor com olhos arregalados e roupa de trabalho e a veterinária diz: “vai ter que amputar!” O senhor responde: ” vinte e cinco anos criando cachorro e nunca vi disso, nunca aconteceu!” E completa: “é que o “patrão” ficou com o filhote e só trouxe para nós agora. E ele (o cachorro) não sabe nada e o “patrão” mandou soltar. E nós soltamos”.
Resultado: o cachorro de tanto perseguir tudo que se movia, no grande quintal gramado que um dia (e não há tanto tempo atrás) foi área de Mata Atlântica, finalmente atacou o cortador de grama, prendendo uma pata nas lâminas! Consequências: cachorro entre a vida e a morte e funcionário morto de medo de ser despedido!
E o patrão? Certamente buscando alguém para culpar!
Não é incomum famílias abastadas brasileiras terem uma segunda residência, seja no litoral ou na serra, sendo comuns os sonhos de consumo de ter um grande gramado (bem esterilizado, sem nenhum outro tipo de vida) e um cachorro (geralmente de porte grande) correndo livre pelo tal gramado… É incrível pensar que mesmo com uma pequena parcela de Mata Atlântica que sobrou, o Brasil continua permitindo o corte de matas nativas que são convertidas em gramados. E, se aparece alguma fauna, os cães, sempre soltos, perseguem, mutilam e matam. E na maioria das vezes quem vai “limpar” o estrago é o empregado, que logo “dá um jeito”, enterrando, muitas vezes até ainda vivo, o silvestre “encrenqueiro”. Afinal, para o cachorro do patrão, tudo e mais um pouco!
E claro, aquela linda paisagem europeia, do tal gramado infinito, precisa ser protegida com quilômetros e quilômetros de alambrado e quilos e quilos de herbicida! E a fauna tem de sobreviver e essa visão de mundo! Haja coração! E o paradoxo é que muitas dessas famílias, as dos gramados infinitos, acreditam que são defensoras do meio ambiente, quem sabe até contribuindo financeiramente com alguma ONG ambiental, sem em nenhum momento considerar o impacto que a realização desses sonhos de consumo tem sobre a fauna brasileira. E quando se fala em animais brasileiros é preciso considerar o detalhe de que, ainda e apesar de tudo, é uma fauna baste diversa. É preciso, portanto, conservar o que sobrou!
Mas como fazer isso? Conciliando a existência da vegetação e da fauna nativa com o “projeto de jardim perfeito” e do animal doméstico perfeito!
Como implantar isso? Primeiro eduque o seu cão! Cachorro, guia e canil combinam, desde que adequados (considerando a metragem, a ventilação, a iluminação e controle de umidade) e fazem com que o animal doméstico tenha muito mais qualidade de vida, sem estar exposto a acidentes cruentos como o que mencionamos. Cachorro tem que ter rotina, com alimentação e descanso adequados e regulares. Animal “livre” o tempo inteiro está sob constante estresse simplesmente por estar exposto a um excesso de estímulos. Outro aspecto é a escolha da raça: animais de porte grande devem receber treinamento de obediência e serem conduzidos com guia e coleira nos ambientes externos, evitando acidentes com pessoas e outros cães.
E quanto ao jardim perfeito?
Aqui, começo contando uma pequena história. Nos anos 1900, no Rio de Janeiro, foram plantadas mudas de pau-brasil em uma avenida importante. Logo após o plantio, começaram a ser publicadas cartas de leitores nos jornais da época dizendo do “absurdo” de terem plantado “mato” na mais importante avenida da cidade e que o “correto” seria o plantio de bétulas e outras espécies do hemisfério norte, igual a um famoso parque francês de então. Assim, as mudas de pau-brasil foram arrancadas e no local foi feito um plantio com espécies exóticas, consideradas “muito mais bonitas e adequadas”.
Quem disse Berenice? Quem é que definiu o que é mais “adequado” plantar? Por que usamos ainda a expressão “mato” para as nossas plantas nativas, que em geral tem menor valor comercial do que as exóticas?
Construímos nossas casas na mais luxuriante floresta do mundo, a Mata Atlântica! Arrancamos tudo por que é feio? Jardim bonito é com grama? Árvore boa é árvore morta? Sombra é ruim? Sério? Em pleno momento de aquecimento global?
Tudo isso para mostrar o quanto a ação da soltura passa por todo esse cenário complexo, cheio de atores, que insistem em continuar adotando a estética de um século que já se foi e, com isso, impactando diretamente a fauna que ainda tenta sobreviver no pouco que restou da nossa Mata Atlântica. Porque, claro, essas tais famílias abastadas sempre gostam de ficar em beira de reserva de mata, pois, de longe, é muito bonita…
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