
Por Fernando Augusto Sliva Hardt
Biólogoe doutor em Engenharia Ambiental pela Universidade Ca´Foscari de Veneza (Itália). Atualmente, executa monitoramentos ambientais de cetáceos e quelônios em terminais portuários do Sul do Brasil. Integra a REET Brasil
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As atividades portuárias e obras costeiras trazem consigo variadas fontes de potenciais impactos à fauna marinha, uma vez que têm a capacidade de modificar o ambiente. No Brasil, grande parte das instalações portuárias se encontra em regiões estuarinas/costeiras, áreas reconhecidamente de importância ecológica para um grande número de espécies da fauna.
O tráfego de embarcações e as atividades de dragagem e derrocagem (retirada ou destruição de rochas) para manutenção ou aumento de profundidade de canais de acesso aos portos são fontes geradoras de ruídos subaquáticos de alta intensidade. Tais ruídos podem gerar impactos importantes sobre a fauna aquática.
Os ruídos das atividades portuárias se propagam por todo o ambiente, sendo mais intensos em baixas frequências, expondo a fauna aquática à poluição sonora (Richardson et al., 2005). Os potenciais efeitos dessas atividades nem sempre podem ser observados a curto prazo, sendo que a longo prazo podem tornar-se graves (Merchant et al., 2012). Os cetáceos, pelo fato de produzirem sons com diversas finalidades (como transferência de informação de um indivíduo para outro, corte, acasalamento, organização social, agressividade, defesa, laços mãe x filhotes, localização de presas entre outros) podem ser diretamente afetados por tais atividades.
Os ruídos antropogênicos subaquáticos podem gerar três efeitos principais sobre os cetáceos, sendo eles, o mascaramento, as mudanças comportamentais e a perda temporária ou permanente da audição (Richardson, 1995). O primeiro efeito, mascaramento, acontece quando o ruído ocorre com uma intensidade que impede os animais de se comunicarem eficientemente. O segundo efeito, mudanças comportamentais, ocorre quando os animais se comportam de um modo diferente do que se comportariam quando o ruído não está presente (Britto, 2009). Entre as diferentes reações que podem ser observadas em curto prazo, podemos citar o afastamento ou abandono de um local, evitando áreas importantes de alimentação, com possíveis consequências para as espécies. E o terceiro efeito, perda temporária ou permanente da audição, ocorre quando os níveis sonoros são de tal intensidade que geram efeitos fisiológicos, alterando a capacidade do animal de perceber sons, ou seja, podem ocorrer mudanças em seu limiar auditivo (Richardson, 1995).
Para as populações de tartarugas marinhas, as atividades portuárias, bem como os vários fatores ligados ao desenvolvimento costeiro desordenado, são potenciais causadores de impacto (Marcovaldi et al., 2018). Outros fatores são a movimentação da areia da praia (extração de areia e aterros), a foto-poluição, o tráfego de veículos, a presença humana nas praias, os ancoradouros e molhes, entre outros (Sforza et al., 2017). Por se tratar de espécies de natureza altamente migratórias, mudanças de disponibilidade de recursos alimentares, de circulação de correntes marinhas e ventos podem comprometer seu ciclo de vida longo e complexo (Marcovaldi et al., 2018).
Dragagens são potencialmente impactantes, sendo que a movimentação do equipamento no fundo muitas vezes é imperceptível às tartarugas marinhas, que acabam sendo sugadas junto com o sedimento, principalmente em áreas de agregação, muitas vezes causando a sua morte (Goldberg et al., 2015). Algumas medidas mitigadoras vêm sendo exigidas por órgãos ambientais, como a utilização de dispositivos defletores de tartarugas instalados na ponteira de sucção das dragas, visando a prevenção de captura incidental de quelônios (Sforza et al. 2017). Imagens de defletores nas ponteiras das dragas podem ser observados nas figuras abaixo.

Locais com populações residentes ameaçadas e áreas de alimentação merecem especial atenção (como os cetáceos e quelônios que ocorrem nos estuários do Sul do Brasil). O boto-cinza (Sotalia guianensis) é um pequeno cetáceo que ocorre principalmente nos ecossistemas costeiros que sofrem grande pressão antrópica, como baías, enseadas e estuários, sendo que a espécie foi categorizada como Vulnerável (VU) pelo Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção (Rosas et al., 2018).
A toninha, Pontoporia blainvillei, é reconhecidamente o pequeno cetáceo mais ameaçado do Atlântico Sul Ocidental, devido aos altos níveis de mortalidade acidental em rede de espera ao longo de praticamente toda a área de distribuição. Com base no declínio já ocorrido e projetado, a espécie foi categorizada como Criticamente em Perigo (CR) pelo Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção e a tendência populacional para a espécie é classificada como “declinando” (Danilewicz et al., 2018).
Os estuários do sul do Brasil são importantes áreas de alimentação para os quelônios, principalmente para duas espécies: a tartaruga-verde (Chelonia mydas) e a tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta). Ambas as espécies foram classificadas com o status de Vulnerável pelo Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção (Almeida et al., 2018; Santos et al., 2018), destacando a importância de sua conservação em locais estratégicos ao longo de sua distribuição.
Com a finalidade de identificar e mensurar os potenciais impactos gerados pelas atividades portuárias e costeiras sobre a fauna aquática, os órgãos ambientais têm exigido que os empreendimentos desenvolvam monitoramentos ambientais como condicionantes para a sua operação. Tais monitoramentos geram uma ampla gama de informações que podem subsidiar ações de conservação das espécies bem como indicar medidas mitigadoras dos potenciais impactos causados por estas atividades. Os monitoramentos podem, por exemplo, gerar estimativas populacionais calculadas anualmente, permitindo verificar alterações na dinâmica das populações, como aumento ou declínio ao longo do tempo. Considerando a poluição sonora gerada por essas atividades, os monitoramentos podem ainda indicar possíveis alterações na ocupação das áreas ou mesmo o abandono de uma determinada área pelos animais.
Um exemplo de monitoramento de cetáceos e quelônios de longo prazo é o que vem sendo desenvolvido pela Portos do Paraná desde o ano de 2014, com amostragens mensais ininterruptas. O esforço amostral deste monitoramento foi de mais de 160 dias de campo e mais de 300 horas de observação direta dos animais (APPA, 2021). Para os cetáceos, este monitoramento prevê o reconhecimento individual dos animais através de marcas naturais em sua nadadeira dorsal, utilizando a técnica da fotoidentificação. Um dos resultados obtidos com essa técnica foi a elaboração de um catálogo que, atualmente, conta com 397 animais identificados individualmente e que vêm sendo acompanhados ao longo do tempo.
Através do reconhecimento individual foi possível verificar que alguns animais apresentam preferência por certas áreas, como a região do cais oeste do porto de Paranaguá (Paraná). A ocorrência de botos na área dos berços de atracação está relacionada principalmente com a facilidade de captura de presas devido à disponibilidade delas e a presença de barreiras (costado dos navios atracados). Os animais utilizam essas barreiras para encurralar as presas facilitando a sua captura (figura abaixo). Esse comportamento já foi registrado nesse local há mais de 12 anos (Domit, 2010).
Outra importante informação obtida com a técnica da fotoidentificação é o acompanhamento de marcas específicas, como ferimentos que alguns animais podem apresentar, possivelmente associados com interação com embarcações ou petrechos de pesca. Reconhecer o animal individualmente permite verificar a evolução da marca ou mesmo os possíveis efeitos sobre o animal. Através das estimativas populacionais geradas anualmente foi possível observar que a população de botos-cinza da baía de Paranaguá se manteve estável ao longo de oito anos (APPA, 2021).
A ocorrência de espécies em alguns ambientes que sofrem impactos, como regiões portuárias, pode indicar que elas apresentam algum nível de tolerância às perturbações antrópicas. Porém, é necessário considerar os diferentes desafios que os animais enfrentam por permanecer nessas áreas e tolerar a perturbação, como a exposição a efeitos secundários como alta poluição sonora e presença de embarcações (Richardson et al., 2005). Em longo prazo, os impactos acumulativos são de grande importância, porém possivelmente serão detectados apenas após alguns anos de monitoramento das populações.
É importante que os dados gerados pelos monitoramentos sejam utilizados em ações de conservação das espécies ameaçadas que habitam áreas críticas, indicando padrões de ocupação, áreas prioritárias, ações de mitigação aos potenciais impactos, entre outros fatores importantes para a sua preservação.
Utilizando ainda o exemplo do monitoramento da Portos do Paraná, através da interação dos subprogramas dos monitoramentos ambientais, foi criado um material educativo tendo como público-alvo os pilotos das embarcações de apoio aos navios. Esse material teve como objetivo, além de informar a respeito das principais áreas de concentração da espécie, conscientizar os pilotos das embarcações que transitam em áreas intensamente utilizadas pelos botos-cinza. Tais ações os orientam sobre procedimentos adequados na presença de um grupo de cetáceos, evitando as interações negativas entre os animais e as embarcações.
Relativo aos quelônios, foram fortalecidas ações de conscientização dos pescadores sobre medidas a serem tomadas em casos de captura incidental nos chamados Seminários de Pesca (realizados em quatro comunidades pesqueiras), como procedimentos básicos para ampliar a probabilidade de sobrevivência do indivíduo quando capturado.
Considerando o acima exposto, destaca-se a importância da execução de monitoramentos de fauna de empreendimentos portuários em áreas de importância ecológica, visando minimizar os potenciais conflitos com espécies ameaçadas e gerar subsídios para ações de conservação.
Referências
– ADMINISTRAÇÃO DOS PORTOS DE PARANAGUÁ E ANTONINA – APPA. 2021. Programa de monitoramento da biota aquática e determinação de bioindicadores. Relatório anual do subprograma de monitoramento de cetáceos e quelônios.74p.
– ALMEIDA, A. P.; SANTOS, A. J. B.; THOMÉ, J. C. A.; SOARES, S. S.; MARCOVALDI, M. A.; BELINI, C.; BAPTISTOTTE, C.; MARCOVALDI, M. Â.; SANTOS, A. S. DOS. & LOPEZ-MENDILAHARSU, M. 2018. Chelonia mydas (Linnaeus, 1758), p.26-30. In: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Org.). Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção: Volume IV – Répteis. Brasília, ICMBio. 622p.
– BRITO, I. M. B. 2012. Utilização do estuário do Sado pela população residente de roazes (Turisops truncatus) e interacções com a navegação. Portugal. Tese de Doutorado.
– DANILEWICZ, D., SECCHI, E., MORENO, I. B., FLORES, P. A. C. e SICILIANO, S. 2018. Pontoporia blainvillei (Gervais & d ‘Orbigny, 1844) In: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Org.). Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção: Volume II – Mamíferos. Brasília, ICMBio. 622p.
– DOMIT, C. 2010. Ecologia comportamental do boto-cinza (van Bénéden 1864), no complexo Estuarino de Paranaguá, Estado do Paraná. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Paraná.
– GOLDBERG, D. W., ALMEIDA, D. T., TOGNIN, F., LOPEZ, G. G., PIZETTA, G. T., LEITE JUNIOR, N. O. & SFORZA, R. 2015. Hopper dredging impacts on sea turtles on the northern coast of Rio de Janeiro State, Brazil. Mar. Turt. News. 147: 16-20.
– MARCOVALDI, M. Â.; LOPEZ, G. G.; SOARES, L. S.; SANTOS, A. S. DOS. BELINI, C.; SANTOS, A. S. DOS; LOPEZ, M. & LOPEZ-MENDILAHARSU, M. 2018. Eretmochelys imbricata (Linnaeus, 1766). p.33-36. In: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Org.). Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção: Volume IV – Répteis. Brasília, ICMBio. 622p.
– MERCHANT, N. D. et al. 2012. Assessing sound exposure from shipping in coastal waters using a single hydrophone and Automatic Identification System (AIS) data. Marine pollution bulletin, v. 64, n. 7, p. 1320-1329.
– RICHARDSON, W. J.; GREENE, C. R. JR.; MALME, C. I.; THOMSON, D. H. 1995. Marine mammals and noise. San Diego: Academic Press, 576 p.
– ROSAS, F. C. W.; EMIN-LIMA, R.; SICILIANO, S.; FLORES, P. A. C. 2018. Sotalia guianensis. In: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Org.). Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção: Volume II – Mamíferos. Brasília, ICMBio. 622p.
– SANTOS, A. S.; SOARES, S. S.; MARCOVALDI, M. A.; MONTEIRO, D. S.; GIFFONI, B. & ALMEIDA, A. P. 2018. Caretta caretta (Linnaeus, 1758), p.20-25. In: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Org.). Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção: Volume IV – Répteis. Brasília, ICMBio. 622p.
– SFORZA, R.; MARCONDES, A. C. J.; PIZETTA, G. T. 2017. Guia de Licenciamento Tartarugas Marinhas – Diretrizes para Avaliação e Mitigação de Impactos de Empreendimentos Costeiros e Marinhos. Brasília: ICMBio, 130 p.
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