Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
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A palavra soltura tem sido muitas vezes utilizada de forma a indicar ações de liberação de animais em áreas de mata sem qualquer critério. Temos defendido aqui que esse tipo de ação, na verdade, não é soltura, mas abandono. Soltura de animais silvestres é, e deve ser sempre, uma ação planejada.
Também temos apresentado aqui vários casos de soltura para espécies da nossa fauna que são comumente destinadas para o retorno à vida livre. E embora a ação da soltura não seja uma ciência exata, existem espécies mais generalistas e, portanto, com maior facilidade de se adaptar à “nova condição” de viver em liberdade. Mas o que dizer de espécies cuja população natural é muito pequena ou até mesmo está extinta na área na qual se pretende fazer a ação de soltura?
Atualmente, estão em curso vários projetos em diferentes regiões do Brasil para promover a reintrodução do bicudo (Sporophila maximiliani) , espécie quase extinta no ambiente natural, mas que possui uma enorme população em cativeiro. Apesar de as iniciativas de reintrodução da ave terem sido propostas por instituições renomadas, o Cemave (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres) do ICMBio, associado a outras entidades, promoveu durante todo 2021 seminários com a finalidade de discutir procedimentos que vão desde as normativas para a seleção de plantel destinado à soltura até a questão do monitoramento pós soltura. Ora se as instituições que haviam inicialmente proposto os projetos de reintrodução já eram renomadas, por que então a necessidade de realizar esse esforço no sentido de normatizar as diferentes iniciativas?
Esse é o ponto mais central no que tange a ação de uma soltura. Seja envolvendo espécie ameaçada ou não, existem diferentes caminhos a seguir dependendo da visão que se tem sobre o processo da soltura.
Então vejamos, considerando a espécie em questão, o bicudo, cujo objetivo maior é o estabelecimento de populações viáveis em áreas de ocorrência histórica.
Simples não é mesmo?
A verdade é que, mesmo tendo um planejamento cuidadoso, a ação de soltura contém elementos imprevisíveis. Assim, um dos pontos mais interessantes do seminário foi justamente conhecer as experiências dos diferentes projetos em andamento. Experiências que, ao final e ao cabo, não diferem do dia a dia de quem faz soltura rotineiramente, apesar de estarmos falando de uma espécie praticamente extinta em ambiente natural e, portanto, com a qual todo cuidado é pouco.
Um exemplo disso é que mesmo com técnicas avançadas de monitoramento após a soltura, parece existir um limite para o acompanhamento dos indivíduos, isto é, após algum tempo da soltura não é mais possível saber o que acontece com os animais soltos. Para alguns indivíduos é possível identificar sinais de predação, mas outros simplesmente desaparecem após algum tempo. Outro dado interessante que foi abordado no seminário é que outras espécies de aves podem parasitar o ninho dos recém-chegados e aí os animais, mesmo vivos e se reproduzindo, não têm ninhadas vingando.
Enfim, os desafios para o reestabelecimento de uma população viável são muitos e bastante complexos por dependerem de relações ecológicas intactas nas áreas destinadas à reintrodução, sendo necessário também um controle da ação humana e de animais domésticos. É muito difícil mesmo, pois hoje, em qualquer área natural, mesmo protegida, existem perdas nas relações ecológicas e predação por caça ou pela ação da fauna domésticos. Estamos vivendo tempos muito difíceis.
Um aspecto interessante, abordado no seminário, foi a informação da descoberta de uma pequena população natural do bicudo, em localização não informada, e que não respondia ao som do playback de gravação de aves da mesma espécie, mas de cativeiro. Como explicar que esses animais tenham sobrevivido? Qual a origem desses animais: escape de criadores? São perguntas que estão por responder.
Ok, então agora estamos tranquilos, pois o assunto soltura/reintrodução de bicudos ganhou um manual com os procedimentos todos definidos em 47 páginas e várias referências científicas. Mas e as outras espécies ameaçadas? E as outras tantas não ameaçadas, mas com populações de tamanho desconhecido ou simplesmente diminuindo pela degradação ambiental, que é cada vez maior? Todas as espécies têm particularidades que também merecem nossa atenção e certamente também é possível escrever manuais igualmente extensos sobre cada uma delas.
No passado, uma estratégia muito comum para o estabelecimento de populações era a seguinte: “solta um monte por que basta a sobrevivência de um casal ou dois para estabelecer uma população”. E assim consolidou-se a ideia de que soltura é ineficiente e polêmica! Claro, sem reabilitação e com soltura de muitos indivíduos ao mesmo tempo ocorre a estratégia do cardume, com muitos morrendo e alguns sobrevivendo.
Nada bom, principalmente para o animal solto na forma “cardume”. E tudo isso sem monitoramento, claro! Ou seja, é preciso adotar procedimentos mínimos que garantam um tratamento ético ao animal destinado à soltura e que permitam a obtenção de dados de monitoramento pós soltura, ainda que seja por tempo determinado. Uma semana de monitoramento pós soltura bem-feito já descarta o problema da mortalidade nas primeiras horas, que quando ocorre, geralmente indica erro grosseiro do manejo dos animais destinados ao retorno à vida livre.
Finalizando, a soltura é uma estratégia cada vez mais necessária, especialmente no que se refere ao reforço populacional e ao repovoamento de áreas em regeneração florestal. Que a discussão sobre a soltura continue sempre e cada vez mais trazendo a adoção de melhores estratégias para que, ao final, resultem em populações saudáveis de animais silvestres do maior número possível de espécies da nossa fauna.
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