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Por Vera Maria Ferreira da Silva¹ e Diogo Alexandre de Souza²
¹Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
²Biólogo, vice-presidente da Associação Amigos do Peixe-boi (Ampa) e doutorando em Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
aquaticos@faunanews.com.br
De acordo com o guia Diretrizes Para Reintroduções e outras Translocações para fins de Conservação da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), a reintrodução de uma espécie no ambiente natural tem vários objetivos e abordagens. A definição clássica é o movimento e a soltura intencional de um organismo em uma área da qual ele tenha desaparecido, visando restabelecer uma população viável na área original de ocorrência.
Seja qual for a espécie e a proposta, ela deve sempre seguir um processo lógico, com objetivos e conceitos bem definidos, viabilidade e avaliação de risco, tomada de decisão, implementação, monitoramento, ajustes e avaliação de forma a garantir, no final, sucesso com a sobrevivência dos indivíduos e o estabelecimento da espécie na área.
Apesar dos protocolos estabelecidos e dos cuidados em todas as etapas previstas em um processo de reintrodução, como preconizado pelo Grupo de Especialistas em Reintroduções da IUCN, as primeiras tentativas de soltura do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) tiveram respostas pouco satisfatórios devido à dificuldade de adaptação dos animais às condições da natureza. O protocolo foi revisado e com a inserção de um período de adaptação dos espécimes a um ambiente seminatural, os resultados indicam enorme taxa de sucesso de adaptação pós-soltura.
O Projeto Peixe-boi do Inpa, criado em 1974, desenvolve inúmeros estudos sobre esses animais (peixe-boi-da-Amazônia), endêmicos dos rios da bacia Amazônica e classificados como espécie vulnerável a extinção, tanto pela IUCN quanto pelo ICMBio. Desde 2016, o Inpa com a Associação Amigos do Peixe-boi (Ampa), apoiados pela Petrobras Socioambiental, a Universidade de Kyoto, a Itochu e o Aquário de São Paulo, entre outros parceiros, iniciaram a segunda fase do programa de soltura de peixes-bois.
Os animais são órfãos reabilitados nos tanques do Centro Aquático Robin Best, no Bosque da Ciência-Inpa, em Manaus, no âmbito do Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, e liberados na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus, com total apoio das comunidades localizadas dentro dessa unidade de conservação do Amazonas.
Entre fevereiro de 2016 e julho de 2021, liberamos 44 peixes-bois, que passaram a ser monitorados por moradores das comunidades da área de soltura, a maioria ex-caçadores da espécie. Os monitores saem diariamente em pequena embarcação motorizada na busca dos animais e de informações que nos permitam avaliar os movimentos e as condições de adaptação deles no seu novo habitat.
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Do total de peixes-bois liberados na natureza, 23 tiveram transmissores do tipo VHF (Very High Frequency – Frequência Muito Alta) acoplados a um cinto preso no pedúnculo caudal. Esse equipamento pesa aproximadamente de 500 a 600 gramas, o que corresponde a no máximo 1% do peso corpóreo do animal e não interfere no comportamento de natação e demais atividades dos indivíduos.
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Foram 11 indivíduos machos e 12 fêmeas com idades entre 3 e 16 anos. Esses animais chegaram ao Inpa filhotes e foram criados com dieta láctea artificial em mamadeira por até dois anos, até passarem à alimentação exclusiva de vegetais cultivados e plantas aquáticas coletadas na natureza.
O peixe-boi-da-Amazônia, diferentemente do seu primo marinho, tem um comportamento muito elusivo e discreto. Podemos dizer quase invisível, o que dificulta a sua detecção e o monitoramento visual pós-soltura na natureza. Os sinais dos transmissores VHF são o único meio de localização desses animais na imensidão do sistema de lagos de várzea da Reserva. Nossos monitores são exímios conhecedores dos hábitos e do comportamento do peixe-boi. Conhecem a região como ninguém e encontram evidências da presença de peixes-bois na área tanto pela recepção de sinais fortes dos transmissores como pela presença de fezes, vestígios de alimentação e folhas comidas, entre outros. Mas como saber se os animais liberados estão bem e em boas condições físicas ao longo dos últimos meses?
A oportunidade de responder essa questão surgiu quando foi possível, em diferentes ocasiões, capturar e verificar as condições físicas de quatro peixes-bois após 6 a 18 meses da soltura (um em 2016, outro em 2017 e dois em 2019). Todos os animais cresceram cerca de 10 centímetros de comprimento e 45 quilos de peso. Mas, para nossa surpresa, Baré, uma fêmea que chegou ao Inpa filhote e foi mantida em cativeiro por 16 anos, depois de 18 meses de vida livre aumentou 12 centímetros e ganhou 106 quilos. O imenso volume abdominal e o edema vulvar sugeriram avançado estado de gravidez, que foi confirmada depois de análises dos níveis de progesterona no soro do sangue.
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O uso da técnica de rádio-telemetria se mostrou bastante eficiente no monitoramento dos animais e na obtenção de informações da adaptação dos peixes-bois criados em cativeiro. Permitiu a confirmação da qualidade da área de soltura escolhida e possibilitou a localização de alguns indivíduos em condições favoráveis de recaptura para a avaliação física. O maior benefício a nível populacional, em qualquer programa de soltura, é a reprodução dos indivíduos reintroduzidos. A gravidez da Baré confirmou que, mesmo depois de 16 anos em cativeiro, a capacidade de adaptação ao ambiente natural com a interação e o compartilhamento dos mesmos habitat com peixes-bois selvagens é possível.
O período de adaptação no cativeiro seminatural e, posteriormente, o alto nível do monitoramento, aliado ao compromisso dos parceiros e das comunidades locais, foram vitais para o sucesso na reintrodução dos peixes-bois do plantel do Inpa. Desde o início do Projeto, em 2016, e durante os quase 25 meses de monitoramento, não houve registro de caça de peixes-bois na área de estudo. Esses fatores juntos confirmam o êxito do nosso Programa de Soltura de Peixes-bois órfãos criados em cativeiro.
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