Por Suzana Padua
Mestra em educação ambiental e doutora em desenvolvimento sustentável. Co-fundadora e presidente do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas e da Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade (Escas)
educacaoambiental@faunanews.com.br
Sem entrar nos meandros políticos atuais, que certamente não têm propiciado cenários promissores, a dualidade, o fanatismo e a certeza que uns têm de estarem certos enquanto acreditam que outros são os errados nada têm de construtivo. Aliás, nada têm a ver com os processos naturais. Na natureza há muitos tons de graduação em tudo, com ciclos que precisam ser trazidos para nossa vida de modo a enriquecê-la. Tudo acontece num determinado ritmo, com variáveis que dependem de estações do ano, fases da Lua, se é dia ou se é noite ou ainda condições atmosféricas, para dar apenas alguns exemplos.
Como enfatiza Edgar Morin, os cientistas muitas vezes veem apenas a ponta do iceberg porque lhes falta a visão interdisciplinar que contemple a diversidade e a complexidade inerente à vida. Somos múltiplos em nossas formas de existir. A começar pelo corpo humano, ou mesmo por uma única célula; há infinitas vidas que se integram para tornar viável nosso ser.
David Orr defende que a ecologia da camada superficial do solo é ainda bastante desconhecida, principalmente quando se justapõe a sistemas amplos e suas relações com a biosfera. Se é assim, o que dirá a visão sistêmica que ainda carece de compreensão? Essa busca por um olhar amplo e integrativo está ausente nos meios educacionais, pois ainda não há no mundo acadêmico predominante o incentivo à interdisciplinaridade, que poderia trazer a noção da grandiosidade da vida. Segundo Orr, o que pode ser manejado não é a natureza e sim os valores humanos. Se durante milênios houve a tentativa de moldar o ambiente e retirar dele tudo o que é possível para suprir as necessidades humanas, que só crescem, os resultados de perdas de biodiversidade, degradação, poluição e desastres ambientais, juntamente com injustiças e inequidades sociais, mostram quão nefasto tem sido esse modelo. Vivemos hoje crises sem precedentes com perdas infindáveis de tudo, inclusive com riscos reais de nossa própria sobrevivência.
O questionamento, portanto, deve ter início em nossos valores e nas nossas escolhas, que determinam os rumos e os destinos que nos aguardam. Todavia, a humanidade parece viciada em só fazer o que quer e, segundo Claudio Padua (conversa pessoal recente), arruma desculpas “honrosas” para atos “desonrosos”. Os efeitos dessas escolhas estão nas práticas insustentáveis que nos levam a termos que enfrentar situações que nunca fizeram parte do nosso repertório. É um aprendizado sem fim, que poderia representar oportunidades para transformarmos nossa forma de vida. Mas para que as crises se tornem oportunidades de mudança é preciso haver a vontade real de substituir padrões, renunciar a hábitos e buscar alternativas que priorizem a vida com qualidade, não mais só para os seres humanos, bem como para todas as espécies e sistemas que mantêm a biosfera em sua plenitude.
Para se atingir esse patamar de existência é preciso transformar a educação. A educação ambiental é decorrente dessa busca. Surgiu nas décadas de 1970/1980, quando se percebeu que havia lacunas e efeitos nefastos que precisavam ser revistos. Ficou claro que a educação tradicional não levava em conta o equilíbrio necessário para a manutenção de uma vida de qualidade. A intenção da educação ambiental é, portanto, louvável e de extrema urgência, mas sua adoção tem sido lenta e esporádica, ou seja, ainda não veio para ficar. Quando é incorporada ao sistema educacional surte efeitos magníficos, mas as pessoas ou estabelecimentos envolvidos ainda são poucos, frente às pressões humanas sobre os ambientes naturais, que continuam incessantes. Escrevi alguns artigos sobre esse tema, pois temos criado campos como desenvolvimento sustentável, sustentabilidade, educação ambiental, economia circular e tantos outros, quando falhamos em olhar e considerar o todo. Os adjetivos deveriam desaparecer se nossa forma de agir incluísse esses princípios norteadores.
Na evolução da educação houve um desmembramento dos saberes em diferentes disciplinas e raramente se juntam os pontos entre umas e outras áreas. Temos hoje especialistas, que conhecem profundamente seus campos de estudo, mas não há incentivo a pensarem no conjunto. Arne Naess apontava que a ecologia fazia perguntas rasas porque faltava questionamento sobre as causas que levam a determinadas situações. Por exemplo, por que uma espécie desaparece, ou o que ocorre com a proliferação de outras espécies quando em desequilíbrio? Ecologicamente, as razões podem até ser analisadas, mas se essas decorrerem de situações sociais, como pressão sobre ambientes naturais, por exemplo, aí já não é mais do campo da Ecologia, mas da Sociologia, Economia ou até Psicologia – e não há diálogo entre esses campos de estudo. A visão do todo, segundo Naess, é fundamental para que a compreensão se dê de forma integral, o que o levou a cunhar o termo “ecologia profunda”, que seria essa visão ampla de como e porque tudo ocorre.
No Oriente, um bom exemplo de visão sistêmica se vê no budismo. Um autor que costumo citar é Thich Nhat Hanh, que defende a interligação de todos os elementos que existem no mundo natural e que fazem a vida possível. Seres vivos são compostos por elementos e dependem deles para continuarem vivos, como o ar, a água e os minerais. Tudo o que existe está interligado, sejam florestas, rios, montanhas, animais, plantas e nós, humanos. Hanh chama essa relação de “interser”, pois há uma teia necessária para que a vida seja possível e esse conjunto precisa ser compreendido, para ser devidamente valorizado e respeitado. Ou seja, nossa visão sobre a existência da vida precisa ser ampliada exponencialmente.
Esse princípio coaduna com outro ponto defendido por Orr, quando faz uma distinção entre inteligência e esperteza. A verdadeira inteligência, segundo ele, é ampla e contínua, com vistas à integridade, à inteireza. Esperteza é geralmente de curto alcance, com know-hows e técnicas que exigem a quebra dos saberes em partes, que são imprescindíveis para a realização de determinados objetivos específicos cuja abrangência é limitada. Nesse caso, a visão do todo é perdida. Segundo Orr, o maior objetivo da educação deve ser incentivar o uso da inteligência com ênfase em visões sistêmicas, incentivando que a esperteza auxilie a se resolver pragmaticamente as questões e problemas específicos das etapas a serem alcançadas.
Thomas Merton implora a seus alunos para que não busquem sucesso. A razão é simples: o planeta, segundo ele, não precisa de gente bem-sucedida e sim de buscadores de paz, curadores, restauradores, contadores de histórias e praticantes de amor em todas as suas formas de expressão. Precisa de pessoas com integridade moral e coragem, dispostas a tornar este mundo humano e habitável para todos, com qualidade e respeito. No entanto, essas qualidades não fazem parte dos bem-sucedidos de hoje.
Um entrave a todo esse processo é o ego, presente no sucesso individual, mas que precisa ser refreado. Essa talvez seja uma das mais difíceis tarefas a serem alcançadas. Mesmo sendo uma ideia ainda vista como utópica, se conseguirmos inspirar os educandos e educadores a se dedicarem a objetivos que visam o bem coletivo (que levem em conta gente e natureza) acima do sucesso pessoal, talvez isso seja possível. Trabalhar por um ou mais propósitos maiores do que ganhos individuais pode ser um incentivador para despertar o desejo e o empenho de se buscar qualidade em trabalhos pela coletividade de uma região, país ou do planeta.
Essas ideias não combinam com os princípios darwinianos, mas a humanidade está chegando a um ponto de ter que fazer escolhas que podem levar a sua total destruição ou a sua sobrevivência. Mais do que sobrevivência, poderíamos estar celebrando a vida em teia, interconectada, regenerada e com valores como cooperação, empatia, solidariedade, respeito e amor. É esse o mundo que eu quero e talvez por essa razão escolhi a educação ambiental.
A educação ambiental teve seu início com foco na conservação e, por vezes, até na preservação da natureza. No entanto, aos poucos foi incorporando as complexidades socioambientais, econômicas e políticas que influenciam decisões e escolhas que afetam o todo. A América Latina teve um importante papel na defesa da inclusão da qualidade de vida das comunidades locais e melhorias sociais, juntamente com a proteção ambiental. Edgar Gaudiano, professor mexicano, e outros líderes latinos influenciaram tais tendência em congressos internacionais possibilitando a ampliação do olhar e a inclusão de aspectos fundamentais nesse campo do saber.
Gaudiano ainda defende a formação de uma cidadania consciente, que leve em conta aspectos culturais, sociais, políticos, históricos, psicológicos e econômicos. Segundo ele, a educação ambiental deve respeitar todas essas nuances, além de educar no ambiente, sobre o ambiente e pelo ambiente. A variante é introduzir uma educação cívica, de participação e empoderamento a ações que garantam esses fatores.
São essas e muitas mais as complexidades que merecem ser consideradas com carinho. A complexidade da vida no planeta precisa ser levada em conta para que se tenha maiores chances de proteção da riqueza existente, além de permitir que a evolução natural de todos os seres, inclusive a nossa, ocorra com integridade. O que parece fundamental nesse momento é a ampliação da consciência sobre nossa responsabilidade e potencial de transformar realidades se adotarmos uma visão ampla e sistêmica. Esse é um importante papel da educação ambiental que precisa ser estimulado. Nós só temos a ganhar com essa visão ampliada e a vida passará a ter muito mais significado e valor.
– Leia outros artigos da coluna EDUCAÇÃO AMBIENTAL
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)