Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Os rios da bacia Amazônica apresentam um sistema hidrológico bastante particular com fases sazonais de enchente, cheia, vazante e seca. Durante a enchente, os rios principais apresentam grande variação no nível da águas, podendo alcançar até 30 metros acima do nível do mar (m.a.n.m.). Esse gigantesco volume hídrico está associado ao grande volume de precipitações, acima de 1.500 milímetros, e ao calor equatorial, gerando grande concentração de umidade no ar, seja proveniente de chuvas, da transpiração da plantas ou da evaporação das massas de água, além do degelo nos Andes. A alta incidência de chuvas está relacionada à combinação de diversos fatores, mas principalmente pela existência da própria floresta, responsável pela geração de grande quantidade de umidade na atmosfera.
No outro extremo, na fase de seca ou de estiagem, o volume de água dos rios chega a níveis muito baixos, com grande redução dos corpos de água e ampliação das áreas de várzea. Em 2012, foi registrado historicamente a maior das enchentes com o nível de água de 29,97 m.a.n.m. e a maior seca dos últimos 100 anos ocorreu em 2010, mostrando uma variação anual média de 13-15 metros.
Em 24 de maio de 2021, a cota registrada no rio Negro ameaça superar a cota de 2012, provavelmente caracterizando a maior enchente já registrada. Esta marcada sazonalidade hidrológica dos rios da região rege a vida, não só das pessoas que aqui vivem, mas de toda a flora e fauna do bioma amazônico. Com os mamíferos aquáticos não é diferente. Esses animais têm sua biologia totalmente adaptada ao ambiente fluvial e suas flutuações ao longo do ano. Os botos, por exemplo, entram na floresta alagada em busca de alimento durante a cheia e são forçados a permanecer nos canais dos rios quando as águas estão baixas (vazante e seca). Na época de águas baixas, os peixes estão mais concentrados, aumentando a oferta alimentar. Isso é importante e coincide com o pico reprodutivo da espécie já que a demanda energética no final da gravidez e no início da lactação é bem maior.
Os peixes-bois-da-Amazônia (Trichechus inunguis), por outro lado, são animais essencialmente herbívoros e se alimentam principalmente de macrófitas aquáticas e semi-aquáticas que são abundantes nas várzeas durante o período das águas altas. Durante a vazante e seca, esses mamíferos migram para lagos e canais de rios mais profundos permanecendo nessas áreas durante todo o período de seca. Ao contrario dos botos, mas pelas mesmas razoes energéticas, o pico de reprodução do peixe-boi é na enchente quando as plantas aquáticas são mais abundantes.
No Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o Laboratório de Mamíferos Aquáticos recebe filhotes de peixes-bois órfãos que são reabilitados em cativeiro visando a soltura monitorada em ambiente natural. Dentro das propostas de manejo desses animais, foi estabelecido que antes da soltura, eles precisam passar por uma etapa em ambiente semi-natural por alguns meses para adaptação às condições naturais fora dos tanque de criação, tais como a temperatura e a turbidez da água, a presença de outros animais aquáticos e a busca por alimento natural. Assim, antes de cada soltura e depois da seleção dos animais aptos a serem reintroduzidos, os escolhidos vão para um lago escavado, na região metropolitana de Manaus, em uma área de várzea, com características muito próximas das do rio.
Nossos planos era liberar 10 peixes-bois prontos para soltura em abril de 2020, mas por conta da pandemia da Covid-19 e do fechamento das unidade de conservação isso não foi possível e os animais permaneceram no lago até poucos dias atrás.
Com a subida das águas e em níveis históricos, o lago de adaptação onde ficam dos peixes-bois foi alagado. Fomos forçados em caráter de urgência, a retirar todos os animais dessa área e trazê-los novamente para os tanques do Inpa, em Manaus. Dos 10 animais no lago, dois não foram ainda recapturados. A principal pergunta que ouvimos foi: mas se esses animais seriam mesmo soltos, porque não deixá-los ir embora?
Em primeiro lugar porque a área não é segura e esses animais criados em cativeiro ainda têm forte relação com os humanos e poderiam se tornar presas fáceis em uma região tradicionalmente de intensa pesca. Segundo, porque entre a fase de adaptação ao ambiente natural e a soltura definitiva, fazemos uma bateria de exames clínicos veterinários para garantir que os animais não levem qualquer doença que possa comprometer as populações naturais de peixes-bois na área de soltura. Terceiro, porque se soltarmos agora esses animais ainda inexperientes, quando o nível das águas está tão alto e toda a várzea está alagada, e eles adentrarem muito a várzea, há o risco de eles não saírem da região quando o nível das águas baixar e ficarem encalhados em poças e acabarem morrendo encalhados.
E por último, porque os peixes-bois precisam ser soltos em uma área protegida cuja população local está engajada na proteção e na conservação deles. Parte dos animais é solta com transmissores do tipo VHF e é monitorada por ex-caçadores de peixes-bois contratados e treinados para esse fim. Eles são os embaixadores da conservação do peixe-boi na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Piagaçu-Purus e nos ajudam a garantir o sucesso da reintrodução e do monitoramento.
Se tudo der certo e a pandemia não se agravar, pretendemos liberar esses animais em julho. Serão 12 peixes-bois devolvidos à natureza, fechando um ciclo provocado inadvertidamente por pescadores que acidentalmente capturam esses filhotes em suas redes de pesca. Até lá, temos uma superpopulação de peixes-bois em cativeiro e pouco recurso para mantê-los.
Os peixes-bois pertencem à União e o Inpa é fiel depositário. São elementos da fauna brasileira ameaçada de extinção e é nossa responsabilidade garantir o bem-estar deles.
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