Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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A bacia Amazônica com seus 7,5 milhões de quilômetros quadrados de extensa malha de rios, lagos e canais pode ser considerada um oceano de água-doce. A biodiversidade desse impressionante ecossistema inclui uma flora aquática exuberante, milhares de espécies de peixes e incontáveis números de invertebrados.
De acordo com a geologia das nascentes e do leito onde percorrem, os rios amazônicos apresentam três tipos de águas. Alfred Wallace, entre 1848 e 1852, foi o primeiro naturalista a descrever as características dos rios amazônicos, chamando a atenção para a coloração de suas águas. Dividiu os rios nos seguintes grupos: os rios de águas brancas, os rios de águas pretas e os rios de águas “azuis” ou claras, como conhecemos hoje. No entanto, a classificação limnológica dos rios amazônicos em negro, branco e de águas claras, assim como seus sistemas de inundação, que os classifica em igapó e várzea, foi feita na década de 1940, pelo emérito professor Dr. Harald Sioli.
Comparado com os mamíferos aquáticos fluviais, os mamíferos marinhos são mais numerosos e diversos, com cerca de 84 espécies de golfinhos, 14 de baleias, 35 de pinípedes (focas, lobos-marinhos e leões-marinhos), duas de peixes-bois, uma de dugongo e duas de lontras-marinhas, além das espécies de lontras que habitam tanto ambientes costeiros marinhos quanto de água-doce. Embora com menor número de espécies, os rios da Bacia Amazônica, esse vasto oceano de água-doce, abriga também golfinhos (o boto-vermelho e o tucuxi), uma de peixe-boi e duas de lontras ou mustelídeos aquáticos (a lontrinha e a ariranha).
Todas essas espécies de mamíferos aquáticos estão amplamente distribuídas nos rios e lagos da Amazônia. Embora tenham sido bastante exploradas nos últimos séculos, ainda são abundantes em algumas áreas da região e ocorrem em todos os tipos de águas dos rios que formam a bacia Amazônica.
Certamente, o peixe-boi foi a espécie mais explorada já que a sua carne e gordura eram muito apreciadas e utilizadas pelas populações nativas do Brasil desde antes da presença dos europeus, como também pelos exploradores e colonizadores que chegaram na região após seu descobrimento.
Domning (1982) analisou dados históricos sobre o comércio de couro de peixe-boi a partir do século 18. Verificou a existência de intensa caça entre 1934 e 1954, estimando que mais de 19 mil peixes-bois foram mortos nesse período.
O aumento pela demanda do couro do peixe-boi na década de 1940 coincide com a Segunda Guerra Mundial, quando os japoneses invadiram as regiões de produção da borracha natural cultivada na Malásia, impedindo o acesso a esse produto pelas indústrias da Europa e dos Estados Unidos. O couro do peixe-boi, devido a sua espessura e resistência, era utilizado na fabricação de correias e tabiques de maquinários industriais. Na década de 1950, no entanto, ocorreu drástica redução na demanda pelo couro do peixe-boi, que já se encontrava escasso. Essa redução coincide com a introdução da borracha sintética para a fabricação das correias e de outros produtos vulcanizados na indústria, substituindo assim definitivamente o couro desse animal.
A ariranha foi a segunda espécie mais explorada na região. Segundo Antunes e colaboradores (2014) e Pimenta (2016), a caça comercial da ariranha para sua valiosa pele levou à extinção local da espécie em muitas áreas. A redução populacional da espécie resultou na substituição pela caça da lontrinha para o comércio de peles.
Essas duas espécies foram intensamente caçadas para suprir a demanda de peles na indústria da moda. De acordo com Carter e Rosas (1997), mais de 40 mil peles, só de ariranha, foram exportadas do Brasil entre 1960 e 1967.
Com a quebra do ciclo da borracha no Brasil devido à produção em larga escala na Malásia, os comerciantes da borracha passaram a buscar outros produtos que substituíssem esse comércio, passando a investir nas peles dos animais amazônicos, que ficaram entre os principais produtos comercializados, ao lado da castanha-do-pará e do pau-rosa.
O boto-vermelho, desde o Brasil colonial, foi protegido por lendas, superstições e por exercer grande influência no imaginário dos povos amazônicos. Historicamente, não foi explorado comercialmente. Pescadores e ribeirinhos acreditavam que matar o boto trazia má sorte e o uso do seu azeite na iluminação poderia causar cegueira. Tanto A. Wallace como H. Bates, naturalistas registrando e coletando animais na Amazônia no final do século 19, relataram a dificuldade em obter espécime desse animal para suas coleções. Somente a partir do final da década de 1990, com a erosão das lendas e a pressão econômica sobre os pescadores locais, é que a prática da caça do boto-vermelho para ser usado como isca na pesca do bagre piracatinga teve seu início. Essa prática, em pouco tempo, levou à redução populacional da espécie em vários rios da região. Junto com a captura acidental em redes de pesca, essa é a maior ameaça sofrida pelo boto-vermelho desde a sua descoberta pela Ciência.
A outra espécie de golfinho fluvial, o tucuxi, pertence a família Delphinidae, tipicamente marinha, é exceção vivendo exclusivamente em água-doce. É um dos menores golfinhos do mundo. Não existem relatos de perseguição, caça ou uso desse animal. Os pescadores o consideram amigo e o protegem. Geralmente, quando encontrado ainda vivo emalhado em rede de pesca, ao contrário do boto, considerado ladino e “malinador” (expressão local para “fazer maldades”), o tucuxi é liberado vivo. Isso pode ser devido ao animal nem se aproximar muito das margens nem das embarcações ou das atividades de pesca. Interage menos com os pescadores, não rouba pescado das redes e tem um comportamento de saltos e cambalhotes que gera a percepção de que é brincalhão, encantando as pessoas que têm a oportunidade de observá-los.
Com exceção da lontrinha, todas as espécies de mamíferos aquáticos da Amazônia encontram-se em alguma categoria de ameaça. Isso pode ser explicado devido ao fato desses animais compartilharem seu habitat e recursos com milhares de pessoas e estarem sujeitos aos impactos da exploração e do uso dos rios.
Esses animais, exceto o peixe-boi, são predadores de topo de cadeia. Entretanto, todos eles exercem importante papel na manutenção do equilíbrio ecológico do ecossistema aquático amazônico. Atuam como espécies sentinelas, ajudando a monitorar a saúde dos ecossistemas e protegendo outras espécies com requisitos ecológicos semelhantes. Proteger os mamíferos aquáticos e seu habitat é fundamental, pois simultaneamente estaremos beneficiando os seres humanos.
Referências
– ANTUNES, A.; SHEPARD, G.H. Jr. & VENTICINQUE, E. M.. O Comércio internacional de peles silvestres na Amazônia Brasileira no século XX. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciências Humanas 9(2): 487-518, 2014.
– CARTER. S. K., & ROSAS. F. C. W., Biology and conservation of the giant otter Pteronura brasiliensis. Mammal. Rev. 1997. 27:1-26.
– DOMNING, D. P. 1982. Commercial exploitation of manatees Trichechus in Brazil c. 1785-1973. Biological Conservation 22: 101-126.
– PIMENTA, N. C. 2016. O retorno das ariranhas à paisagem Baniwa. Dissertaçao de Mestrado em Ecologia, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazonia (INPA), Manaus.
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