
A revista São Paulo do jornal Folha de S. Paulo acompanhou em algumas edições parte da trágica história do papagaio Fred, que durante 24 anos viveu no bar do Zé Ladrão, no bairro paulistano de Perdizes. Resumindo o que foi noticiado: uma pessoa denunciou para a Polícia Militar Ambiental que o comerciante criava a ave sem autorização, o que motivou a apreensão (realizada em 30 de setembro). Inconformado, Zé Ladrão recorreu à Justiça que concedeu em caráter liminar (não definitivo) a guarda provisória do animal ao comerciante. Em 16 de outubro, Fred foi retirado do Centro de Recuperação de Animais Silvestres (Cras) do Parque Ecológico do Tetê (administrado pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica do governo paulista) e voltou a viver com o dono do bar, mas, doente, morreu em 6 de novembro.
Durante cada etapa dessa história, a Folha de S. Paulo e parcialmente a Rede Record (programa Domingo Espetacular) acompanharam a mobilização de Zé Ladrão, seus vizinhos e fregueses no esforço de recuperar Fred. Na página do comerciante no Facebook, o inconformismo e a revolta foram os tons dos comentários – principalmente com o desfecho triste para o papagaio.
A necessidade de autorização para o comércio e a criação de animais silvestres como bichos de estimação não é nova. Desde de 1967, a Lei de Proteção à Fauna (Lei 5.197) classifica como crime tais atitudes, o que foi mantido com o artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605) de 1998, que prevê pagamento de multa e prisão de seis meses a um ano para os infratores. Ainda assim e apesar de a imprensa noticiar cotidianamente as apreensões de animais silvestres criados ilegalmente como bichos de estimação, há quem alegue desconhecer a legislação.
Bom, mas você pode argumentar que nem todo mundo acompanha o noticiário. Ok, vamos lá então comentar as leis…
O artigo 3º do Decreto-Lei nº 4.657, de 1942, também conhecido como "Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro", estabelece um princípio segundo o qual as pessoas têm a obrigação de conhecer as leis, impedindo então o uso do desconhecimento da lei como desculpa. É uma “ficção jurídica”, mas necessária para manter o convívio social organizado.
Mas a criação doméstica de animais domésticos e o comércio de fauna, quando pensamos no contexto histórico e cultural que formou tais hábitos é antigo: um costume europeu já presente na Idade Média, indígena desde sempre e, portanto, presente no Brasil desde 1500. Recente é a ilegalidade de tais atitudes sem autorização do Estado. Cabe portanto ao poder público a responsabilidade de instrumentalizar-se para combater essas infrações com competência. O que nunca foi feito.
Não se pode simplesmente ignorar a legislação por conta da incapacidade do poder público em lidar com essa situação. Por isso Fred foi apreendido. A Polícia Militar Ambiental cumpriu seu papel e assim deve ser. O carismático Zé Ladrão está errado e participou de uma enorme violência contra Fred e contra o equilíbrio da natureza.
Zé Ladrão adquiriu um papagaio que foi retirado da natureza, provavelmente ainda filhote, e o obrigou a acostumar-se com uma dieta que naturalmente não é a que teria em vida livre, a não conviver com os de sua espécie (papagaios precisam socializar), a não ter uma parceira para reproduzir (que por sinal, se existisse, o acompanharia sempre, afinal papagaios são monogâmicos) e a não voar com todo seu potencial. Fred foi apenas um esboço de papagaio, pois também nunca cumpriu suas funções ecológicas (predar ou ser predado, espalhar sementes pelas florestas, enfim, interagir com outros elementos de seu ecossistema de origem).
Mas Zé Ladrão considerou que tinha o direito de continuar com Fred. Constituiu advogado e recorreu à Justiça, que determinou o retorno do papagaio ao comerciante justificando na decisão que “a eventual mudança de hábitat pode se mostrar mais prejudicial ao animal do que mantença deste no ambiente ao qual já se encontra acostumado.”
“A possibilidade de ocorrer danos à saúde das pessoas e dos animais envolvidos é real caso não haja cuidados e infraestrutura adequados. De acordo com a veterinária Maria de Fátima Martins, “no caso de um longo convívio com um animal silvestre, dado a capacidade de o animal ter senciência (capacidade de sentir sensações e sentimentos), o mais indicado seria ele permanecer junto ao ambiente que lhe é familiar, pois a alteração da situação pode acarretar solidão, estereotipias diversas, culminando com a morte”. Professora da Universidade de São Paulo, ela pesquisa a interação homem-animal e o bem estar animal.
Veterinária e doutora em psicologia (de humanos), especialista na relação dos bichos com os homens, Hannelore Fuchs concorda com Maria de Fátima. “O novo ambiente, quando há a apreensão, quebra uma rotina e muda as expectativas do animal, gerando estresse intenso e alterando sua homeostase (equilíbrio)”, afirma.” – texto da matéria “Silvestres de estimação”, publicada na edição de outubro de 2013 da revista Terra da Gente
Fred morreu de doença respiratória após 10 dias de internação em uma clínica veterinária particular.
‘”É frequente que papagaios com alimentação inadequada apresentem infecções respiratórias”, explica a veterinária Liliane Milanelo, do parque Tietê, que diz ter diagnosticado nele estado “não crítico” de falta de vitaminas.
E completa: “Essa ave sugeria intenção de reprodução e foi colocada com fêmeas. Quando foi retirada do contato delas pela liminar, pode ter apresentado frustração reprodutiva, o que, para um animal silvestre, é mais forte que saudade do dono.”’ – texto da matéria “Papagaio mascote de bar na zona oeste de SP morre após dez dias internado”, publicada em 16 de novembro de 2014 pela Folha de S. Paulo
E agora? Quem está com a razão?
Tal dúvida seria menos relevante se o poder público (não apenas o Estado de São Paulo, mas todos os entes da federação: União, demais Estados, Distrito Federal e Municípios) investissem no atendimento, recuperação e destinação de animais silvestres apreendidos. Os centros de triagem e recuperação (Cras e Cetas) espalhados pelo Brasil são insuficientes para a quantidade de bichos retirados do comércio ilegal, de pessoas que os criam sem autorização, resgatados de ambiente urbano ou acidentados. Além de poucos, há falta de recursos financeiros e de profissionais para que um bom trabalho seja desenvolvido. As consequências são instituições lotadas, muitas delas sendo praticamente depósitos de animais, onde as vítimas da ganância dos traficantes e da carência afetiva de seres humanos não raramente ficam sem receber os cuidados necessários (por falta de dados do Fauna News, não se pode afirmar que seja o caso do Cras do Parque Ecológico do Tietê).
Essa situação permite que muitos infratores, como Zé Ladrão, recorram à Justiça e obtenham decisões favoráveis. Já imaginou se os Cetas e Cras (com destaque para os da administração pública, pois há instituições do terceiro setor que desenvolvem ótimos trabalhos) fossem centros de excelência em que, além de contribuírem com a conservação da biodiversidade, primassem por zelar pelo bem-estar dos animais? Com certeza os juízes agiriam diferente.
A situação torna-se ainda mais grave quando o trágico desfecho da história de Fred reforça no imaginário da população a ideia de que Zé Ladrão e tantas outras pessoas que criam animais silvestres sem autorização e com pouca informação sobre as necessidades dos bichos são a melhor opção para cuidarem dessas vidas. A atuação do sistema montado pelo poder público no caso desse papagaio foi um mais um golpe conta o combate ao tráfico e ao pet ilegal.
Sem contar que decisões como a que favoreceu Zé Ladrão têm acontecido com certa frequência, o que desmoraliza ainda mais ao já fraco artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais. O que era ilegal passa a ser legal, com a guarda provisória do animal.
No universo desse imaginário encontra-se a imprensa, que “comprou” a história comovente de Zé Ladrão (que sim, sofria com a apreensão e agora sofre com a morte de Fred), mas pouco importou-se com a principal vítima: o papagaio. Não se falou do sofrimento que esse animal suportou ao ser coletado ou capturado na natureza, no sofrimento do transporte de sua região de origem até São Paulo (provavelmente amontado em alguma caixa durante horas com outros de sua espécie, com calor, sem ventilação adequada e pouco ou nenhum alimento e água) e com a exposição aos ruídos e poluição por ficar em um poleiro na porta do bar.
Pelo contrário, a Folha de S. Paulo e a matéria veiculada no programa Domingo Espetacular da Record de 19 de outubro de 2014 primaram pela superficialidade, pelo tratamento emocional da questão e, sobretudo, pelo antropocentrismo ao esquecer que Fred foi a grande vítima da ação humana ao ser traficado, criado como um esboço de papagaio e sem poder contar com um sistema do poder público que conseguisse assegurar sua vida.
Jornalistas são parte da sociedade e também devem ser educados e conscientizados sobre esses problemas. O tratamento que eles dão a casos como o de Fred é similar ao comportamento dos vizinhos e fregueses de Zé Ladrão, que enxergavam naquele esboço de papagaio um bichinho lindo, que amava seu “dono”, era amado por todos e, sobretudo, deveria estar ali, naquele poleiro da porta do bar.
– Leia as matérias da revista São Paulo da Folha de S. Paulo sobre o caso de Fred:
“Mascote de bar em Perdizes, papagaio de 24 anos é denunciado e apreendido”, publicada em 12 de outubro de 2014
“Justiça devolve papagaio de 24 anos a dono de bar na zona oeste de SP”, publicada em 19 de outubro de 2014
“Papagaio mascote de bar na zona oeste de SP morre após dez dias internado”, publicada em 16 de novembro de 2014
– Assista à matéria do Domingo Espetacular da Record
– Leia a reportagem “Silvestres de estimação”, publicada na edição de outubro de 2013 da revista Terra da Gente