Cecília Barreto
Veterinária e mestra em Ciência Animal. É analista ambiental do Ibama e chefe do Centro de Triagem de Animais Silvestres do órgão em Belo Horizonte (MG).
Os Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) mantidos pelo Ibama nos diversos Estados do Brasil vêm passando por mudanças drásticas ao longo dos últimos anos. De pequenas estruturas improvisadas para o recebimento de fauna apreendida à formação de uma rede nacional de recebimento e destinação de animais silvestres. Foi, e está sendo, um longo caminho.
A estruturação adequada dos Cetas do Brasil depende, primordialmente, de uma política pública que entenda a importância da atuação dessas estruturas para a conservação da fauna silvestre. Não só daquela ameaçada, já que a enorme maioria dos milhares de animais silvestres recebidos nessas unidades é de espécies tidas como comuns, longe, ainda, das tão propaladas listas de animais ameaçados de extinção.
E como conseguir conscientizar o governo e a população em geral de nossa importância se ainda patinamos tentando convencer nossos pares?
A despeito das evoluções ocorridas nos Cetas nos últimos vinte anos, sua estruturação, melhorias em instalações e equipes, estabelecimento de protocolos bem definidos e parcerias com universidades e grupos de pesquisa, seguimos sendo vistos como “irresponsáveis” por boa parte da comunidade científica que atua em nosso país.
Não é rara a repetição de um discurso ultrapassado, e porque não dizer preconceituoso, de que os Cetas realizam solturas irresponsáveis de animais silvestres apenas para esvaziar suas estruturas. Inclusive, e talvez principalmente, em grandes eventos científicos voltados à conservação.
Em um congresso recente, ouvimos, com surpresa, especialistas renomados de grandes instituições públicas dizerem que os animais recebidos nos Cetas não poderiam voltar à natureza sob nenhuma hipótese.
Nosso espanto aumenta ainda mais quando vemos emocionantes apresentações sobre trabalhos em que os animais recebidos ainda filhotes são criados, reabilitados e soltos pelos mesmos profissionais que tanto criticam os Cetas. Ora, mas é exatamente o mesmo trabalho. Os protocolos, incluindo os de escolha da área e o monitoramento pós soltura, não divergem dos que são aplicados nos Centros de Triagem do Ibama. A diferença informada é de que a soltura por eles conduzida é “responsável”. Subentende-se que a nós cabe a parte irresponsável do jogo.
Quando a discussão pública permite o debate, nos vemos diante de muitos argumentos facilmente combatidos. Todos os animais recebem marcação individual. A questão sanitária é superada através de parcerias para realização de exames ou mesmo em laboratórios montados em algumas de nossas estruturas. Protocolos para a criação de filhotes com o objetivo de evitar o imprinting vêm sendo adotados em ampla escala. Grandes recintos de reabilitação têm sido construídos em várias unidades e em áreas de solturas de animais silvestres (Asas) previamente cadastradas. O uso do soft release é o método escolhido sempre que viável. A soltura de animais exclusivamente em sua área de ocorrência natural com o encaminhamento daqueles recebidos fora de sua área de ocorrência para outras unidades é inegociável.
Muitas vezes nossos contra-argumentos são recebidos com surpresa. E percebemos que o desconhecimento do trabalho realizado nos Cetas não é privilégio apenas da população leiga.
Mas, mesmo quando não há como se contra-argumentar diante dos fatos expostos, a afirmação de que os animais aqui recebidos não devem ser soltos, com raras exceções, permanece.
Nesses momentos, quando perguntamos qual seria, então, a solução que tais especialistas sugerem, uma vez que os animais recebidos nas unidades são, majoritariamente, de espécies comuns de ampla distribuição (será que estariam eles falando de eutanásia de animais saudáveis?), o silêncio torna-se ensurdecedor. Nunca, em quase vinte anos de carreira, ouvi uma resposta para tal pergunta. Dito isso, continuo acreditando que é simplista demais propagar que os animais não devem ser soltos sem que uma solução minimamente ética e viável seja, ao menos, proposta.
Talvez o argumento apresentado que nos incomode de uma forma mais contundente seja o de que as solturas não dão certo e os animais morrem. Mais um argumento simplista, mas que impacta diretamente nossa luta diária de dar uma segunda chance a animais vítimas do tráfico de fauna.
Ora, se os especialistas dizem isso, como convencer leigos e juízes de que os animais silvestres apreendidos merecem uma segunda chance e podem sim retornar à natureza?
Não raro recebemos solicitações de juízes questionando sobre as condições de vida de animais apreendidos em cativeiro irregular cujos “donos” alegam que, longe de seus cuidados, serão condenados à morte nas péssimas estruturas dos Cetas.
As parcerias desenvolvidas ao longo dos anos começam a nos encher de argumentos que antes permaneciam apenas na nossa rotina diária e nos relatos emocionados de quem acompanha o pós-soltura nas Asas.
A parceria com a ONG Waita, em Minas Gerais, nos permite afirmar, cientificamente, que papagaios criados por humanos, mesmo após anos de cativeiro irregular, quando submetidos a um protocolo cuidadoso de reabilitação e soltos sob um processo de soft release em uma Asas cuidadosamente escolhida, conseguem se adaptar à vida livre. O monitoramento realizado através do Projeto Voar identificou filhotes no ninho apenas 60 dias após a soltura.
Uma parceria do Ibama/MG, Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF) e Nobilis propiciou o monitoramento de filhotes de tamanduá-bandeira recebidos e criados pelo Cetas de Belo Horizonte, reabilitados e soltos em Asas como parte do projeto TamanduASAS. O monitoramento pós soltura realizado pela equipe da Nobilis registrou o primeiro nascimento em vida livre de um tamanduá-bandeira criado, reabilitado, solto e monitorado por humanos.
Animais que sofreram traumas pelo encontro inesperado com humanos também são uma realidade nas unidades. Atualmente o Cetas de Belo Horizonte realiza o monitoramento pós soltura de duas onças-pardas, um lobo-guará e uma jaguatirica. Os felinos foram vítimas de atropelamento e o lobo de arma de fogo. Todos foram recebidos e tratados no centro da capital mineira. Após o processo de reabilitação, quando se mostraram aptos ao retorno à vida livre, receberam rádios-colares para monitoramento via satélite. Os dados, coletados há quase um ano, nos mostram o pleno estabelecimento dos animais em novas áreas por eles escolhidas após os primeiros meses soltos. Todos, sem exceção, estariam mortos se não houvessem sido recebidos e cuidados no Cetas. Agora vivem livres nas matas de Minas Gerais, desempenhando seu papel natural.
A nova moda de manter macacos em cativeiro para conseguir likes em redes sociais vem trazendo um novo desafio a reabilitação de animais extremamente inteligentes e que nunca tiveram contato com outros da mesma espécie. O trabalho desenvolvido no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres em Minas Gerais vem obtendo excelentes resultados com a formação de bandos concisos, mistos de animais de vida livre com outros oriundos de cativeiro. Fêmeas mais experientes adotam os filhotes recém-chegados e os que vieram de vida livre transmitem seus conhecimentos aos que nunca tiveram a possibilidade de fazer parte de um bando. Chega a ser emocionante, até para os profissionais mais experientes, ver a interação de animais que chegam às unidades com roupas e fraldas quando se tornam parte do grupo.
Todo o trabalho realizado nos Cetas corre o risco de ser em vão para aqueles espécimes vítimas duplamente do tráfico. Quando foram retirados da natureza e quando são devolvidos aos infratores que os mantinham através de decisões judiciais que ignoram os embasamentos técnicos.
Quem bom seria se não houvesse a necessidade de se manter Cetas ativos. Que bom seria se a nossa fauna não corresse riscos diários. Que bom seria se a o recebimento e reabilitação de animais silvestres fosse a exceção e não a rotina.
Temos todos a obrigação de atuar com responsabilidade quando lidamos com temas referentes à fauna silvestre e conservação in situ (na natureza) e ex situ (em cativeiro). O desconhecimento da evolução da atuação de órgãos e entidades que cuidam de animais silvestres diariamente não pode ser utilizado eternamente como forma de se manter um discurso que ignora o problema e divaga sobre uma solução impossível.
É um trabalho hercúleo conseguir devolver um animal à natureza depois de anos de cativeiro irregular. São inúmeros os passos a serem seguidos até que o lindo momento da soltura chegue. Mas nosso trabalho vai além de cuidar dos animais que recebemos. Passa, também, por lutar diariamente por demonstrar que o trabalho aqui realizado é sim responsável, cuidadoso, bem direcionado e possível!
Diante de tantos desafios diários, nos resta continuar participando ativamente de eventos científicos nos quatro cantos do país para jogar luz não somente aos trabalhos realizados em nossas unidades, mas também na incongruência do discurso conservacionista que ignora as centenas de milhares de animais recebidos diariamente nos Cetas.
Nos mantemos firmes acreditando que, em um futuro próximo, pesquisadores, juízes e leigos defenderão os Cetas e sua importância na conservação da fauna silvestre.
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