Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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No artigo anterior, “A pesca da piracatinga: a maior ameaça ao boto-vermelho“, abordei algumas questões sobre o término dos cinco anos da moratória da pesca da piracatinga (IN Interministerial nº 06, de 17 de julho de 2014), em 1o de janeiro de 2020, sem que as metas estabelecidas tivessem sido alcançadas.
A pesca da piracatinga utilizando carne de botos como isca representou a maior ameaça para os golfinhos da Amazônia desde a chegada dos europeus ao Brasil. O retorno dessa prática, sem nenhuma proposta ou garantia de proteção dos órgãos de pesca, colocaria novamente os botos em situação de risco.
No entanto, o secretário de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) estabeleceu nova moratória (IN nº 17, de 10 de junho de 2020), dessa vez com a duração de um ano e início em 1o de julho de 2020. Os termos estabelecidos, com exceção do tempo de execução, que foi drasticamente reduzido, são similares aos da primeira moratória e propõem:
“I – avaliar os efeitos da moratória para a recuperação das espécies de botos (Inia geoffrensis e Sotalia fluviatilis) e jacarés (Caiman crocodilus e Melanosuchus niger);
II – identificar técnicas e métodos ou alternativas produtivas ambiental, econômico e socialmente viáveis e sustentáveis para o exercício e controle da atividade pesqueira da piracatinga (Calophysus macropterus).”
Certamente, o tempo estabelecido é muito curto para propostas tão ambiciosas, considerando a inexistência de projetos de pesquisas específicos, a definição dos atores e colaboradores e, principalmente, a falta de apoio financeiro para o desenvolvimento dessas atividades e pesquisas.
Os estudos para a avaliação do status de espécies ameaçadas e de reprodução lenta são demorados e requerem monitoramentos a longo prazo. Os monitoramentos, por sua vez, são de extrema importância em projetos nos quais a proteção a longo prazo é um objetivo importante de conservação.
Levantamentos e estudos demográficos são dois métodos amplamente usados para se conhecer as condições de espécies de interesse. A longo prazo, podem distinguir as variações populacionais causadas pelos impactos humanos e, em curto prazo, aqueles devido a eventos naturais. A manutenção de um projeto de monitoramento, no entanto, custa caro, requer bom desenho metodológico, padronização dos métodos pelos grupos de pesquisa e depende da continuidade dos levantamentos e de estudos ao longo do tempo, promovendo avaliações periódicas dos resultados.
Apesar das dificuldades inerentes a essas questões, a oportunidade é excepcional para que os pesquisadores trabalhando com espécies-isca, conservacionistas, pescadores e indústrias da pesca, além das agências de fomento e de conservação animal, se reúnam e discutam juntos diferentes estratégias e objetivos, estabeleçam as bases de trabalhos e as metas a serem alcançadas para que as atividades pesqueiras da piracatinga ocorram sem ameaçar os golfinhos da Amazônia.
Este ano de moratória servirá, principalmente, para o estabelecimento e a consolidação das metas e estratégias para os próximos. Se isso não acontecer e não conseguirmos definir as diretrizes, precisaremos de outra moratória para continuarmos discutindo os já conhecidos problemas da pesca da piracatinga e do uso dos botos e jacarés como isca.
Os golfinhos são animais de vida longa, demoram a atingir a maturidade sexual, produzem um filhote a cada gestação, que dura cerca de 12 meses, e a fêmea amamenta seu filhote por mais de um ano. A biologia do boto-vermelho, o maior dos golfinhos fluviais, não é diferente da de seus primos marinhos.
Os botos também são animais de vida longa, podendo viver mais de 35 anos. As fêmeas alcançam a maturidade sexual por volta dos 10 anos de vida, com cerca de 180-200 centímetros de comprimento corporal, produzem um filhote a cada gestação, que dura aproximadamente 12-13 meses. Os filhotes nascem com comprimento entre 78-90 centímetros e 12 quilos, podendo permanecer com sua mãe entre dois a seis anos. Em média, o intervalo entre nascimentos é de quatro anos e meio, dependendo da idade da mãe e da sobrevivência do filhote.
Embora os nascimentos ocorram ao longo do ano e nos diferentes momentos do ciclo hidrológico dos rios da região, o pico de nascimentos é em setembro, durante o período de águas baixas. Nessa época, os peixes estão mais concentrados, a captura é abundante e a diversidade é grande, proporcionando a fácil obtenção do alimento em uma fase de maior demanda energética do final da gravidez e dos primeiros meses de lactação.
Com base nessas informações, fica evidente que um ou cinco anos não é tempo suficiente para reposição de indivíduos em uma população cuja retirada foi maior e mais rápida do que a sua capacidade de reposição.
Existem alternativas ao uso da carne do boto para a pesca da piracatinga. No vídeo, pescadores utilizam vísceras do peixe dourada para atrair as piracatingas, que são necrófagas e atacam qualquer animal morto.
https://www.youtube.com/watch?v=OEJ66hJx5S4
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