Biólogo, mestre em Ecologia e agente de fiscalização ambiental do Ibama.
nalinhadefrente@faunanews.com.br
Ele é um papagaio e traz o verde e amarelo do Brasil. O verde e amarelo aprisionados pela sutil opressão. Não está sangrando, mas nem por isso não significa que desfruta de bem estar. Ele foi roubado de seus pais. Sobreviveu ao tráfico de animais silvestres. Foi entregue a alguém que o comprou. Essa pessoa possui uma visão distorcida da realidade e acha que o cativeiro, uma eterna prisão, é um lar para o animal. Mas ainda assim, poderiam dizer que os maus tratos ficaram no passado e agora, superando seu histórico, o animal está sendo bem tratado.
O papagaio aparentemente está bem, não possui corrente na pata, não está preso, possui um poleiro, um pote com água e semente de girassol. As suas asas estão aparentemente íntegras. Então, ele está bem.
Será?
– Ele poderia voar, mas gosta muito daqui e não vai embora!
Mas, mesmo a criminosa que o mantém não acredita nisso. Afinal, ela mesma cortou as asas do papagaio. Essa mentira, entretanto, ganha força na ação policial, na ação de fiscalização, na delegacia e, finalmente, na Justiça. Afinal, água, comida e abrigo, o que mais se poderia querer?
Liberdade poderia ser uma resposta. Ele é mantido cativo por uma jaula invisível. Em seu primeiro ímpeto de liberdade, teve suas asas cortadas. Essa “gaiola invisível” cria uma aparente permanência voluntária do espécime quando, na verdade, ele foi mutilado e possui penas das asas cortadas ou arrancadas.
Maus-tratos não se referem apenas a ferimentos sangrando. Eles podem ser mais sutis, porém não menos dolorosos. O Conselho Federal de Medicina Veterinária editou a Resolução nº 1.236, de 26 de outubro de 2018, que define e caracteriza crueldade, abuso e maus tratos contra animais vertebrados. Em seu artigo 2º, a resolução define:
“II – maus-tratos: qualquer ato, direto ou indireto, comissivo ou omissivo, que intencionalmente ou por negligência, imperícia ou imprudência provoque dor ou sofrimento desnecessários aos animais;
III – crueldade: qualquer ato intencional que provoque dor ou sofrimento desnecessários nos animais, bem como intencionalmente impetrar maus tratos continuamente aos animais;
IV – abuso: qualquer ato intencional, comissivo ou omissivo, que implique no uso despropositado, indevido, excessivo, demasiado, incorreto de animais, causando prejuízos de ordem física e/ou psicológica, incluindo os atos caracterizados como abuso sexual”.
Um animal aparentemente saudável e bem tratado ainda assim poderá estar submetido a maus-tratos. É importante que a análise seja técnica e profissional. Deve-se avaliar o ambiente no qual o espécime é mantido e, também, ele próprio. Sobre o ambiente, deve-se atentar para o fato de que a situação constatada é um retrato no tempo, mas identifica uma situação na qual o espécime é mantido durante sua vida. Os seguintes quesitos devem, ao menos, ser considerados:
– possibilidade de abrigo espontâneo do espécime contra os intempéries;
– possibilidade de, espontaneamente, submeter-se à radiação solar;
– existência de água disponível para dessedentação;
– existência de água para banho (embora não seja atividade comum em psitacídeos, ela deve estar disponível aos espécimes);
– higiene do recinto;
– higiene da alimentação;
– poleiros de madeira em diâmetros variáveis, adequados ao tamanho do animal e sem pintura;
– alimentação nutricionalmente adequada, suprida por meio de ração específica para a espécie e complementada por frutas ou dieta estipulada por profissional;
– existência de espaço no viveiro que permita ao animal voar.
No que se refere ao próprio papagaio, deve-se considerar:
– a existência de mutilação: penas das asas cortadas ou arrancadas;
– escore corporal, inclusive sobrepeso ou obesidade;
– pigmentação amarela nas penas indicando problemas nutricionais;
– automutilação: “arrancação” de penas;
– problemas no bico com crescimento anormal;
– amarrado por corrente.
O importante, muitas vezes, não está exposto aos olhos, mas será visível caso se olhe com atenção e cuidado para o bem estar do animal.
O texto reflete posição pessoal e não, necessariamente, institucional.
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