Por Rubem Dornas
Biólogo, especialista em Geoprocessamento e mestre em Análise e Modelagem de Sistemas Ambientais. É membro da Rede de Especialistas em Ecologia de Transportes (REET Brasil) e do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NERF-UFRGS)
Em 2016, lá nos primórdios da (agora) antiga coluna Fauna e Estradas (hoje Fauna e Transportes), era dado o recado de que a ecologia de ferrovias precisava se desenvolver. Hoje, quatro anos depois, tenho a convicção de que avançamos bem, embora ainda estejamos no início da jornada. Essa convicção se baseia na própria experiência brasileira, com os mestrados e doutorados defendidos e em curso, nas publicações científicas geradas e no próprio interesse de múltiplos atores na realização de eventos de debate para revisão das normas legais vigentes sobre monitoramento e mitigação de atropelamento por trens.
Apesar da minha convicção, tenho também consciência de que o conhecimento científico sobre o impacto das rodovias em relação à fauna é bastante superior, não só no Brasil, como no mundo, quando comparado às ferrovias. Talvez, pela escassez de estudos, persista a afirmação de que as ferrovias matam menos animais do que rodovias, afinal nas estradas costumam passar vários carros por minuto enquanto em ferrovias passa um trem a cada 25, 30 minutos. Porém, esse é apenas um dos fatores de diferença entre rodovias e ferrovias. Vou tentar detalhar melhor, na minha visão, algumas dessas diferenças.
Inicialmente, tente refletir: quais são as principais diferenças entre essas duas infraestruturas viárias?
Acesso: embora não seja uma diferença estrutural, é óbvio que o acesso a rodovias é muito facilitado quando comparado a ferrovias. A rodovia, em si, já é um acesso e, portanto, qualquer um de nós pode percorrê-la. Assim, se eu tenho um automóvel e percorro determinado trecho com certa frequência, posso fazer um levantamento dos animais que vejo atropelados. As ferrovias, por sua vez, são vias particulares ou concessões do governo e estudos nesse tipo de infraestrutura viária necessariamente dependem de autorizações das empresas que as detêm. Além disso, a malha rodoviária é mais extensa que a malha ferroviária. Nesse sentido, parece clara a razão para que haja mais trabalhos científicos avaliando o impacto sobre a fauna em rodovias quando comparado a ferrovias.
Tráfego: uma vez que existem diversos tipos de rodovias, naturalmente o fluxo de veículos é bastante variável nas diferentes estradas. De qualquer maneira, acredita-se que o fluxo seja mais intenso em rodovias do que em ferrovias. Em ferrovias, principalmente aquelas formadas por apenas uma linha (como na foto de exemplo), a passagem dos trens tem longos intervalos de tempo, numa média em torno de 30 minutos, trafegando em média 25 trens em cada direção (dados de 2016 para a Estrada de Ferro Carajás, uma ferrovia relativamente movimentada). O intervalo dilatado – e irregular – na passagem dos trens é, provavelmente, um dos fatores mais importantes em termos do risco de atropelamento, uma vez que os animais se sentem à vontade para utilizarem a faixa de domínio da ferrovia como seu território. Por outro lado, não se pode esquecer que, embora o fluxo de trens seja menor do que em rodovias, elas são potencialmente mais eficazes ambientalmente, já que uma única composição ferroviária (locomotiva + vagões) pode equivaler a 400 carretas rodoviárias.
Superfície: esse fator costuma ser relegado nas comparações entre rodovias e ferrovias. Pensando nas rodovias como um componente da paisagem, elas são constituídas basicamente numa massa plana de asfalto. Definitivamente não se encontra algo semelhante a esse tipo de estrutura na natureza. As ferrovias, entretanto, possuem elementos como rochas e dormentes de madeira que, de certa forma, correspondem a alguns dos recursos encontrados na natureza. Dessa maneira, não é improvável que as ferrovias sejam menos repelentes à fauna quando comparado a rodovias. Tanto é verdade que vemos serpentes se escondendo nos dormentes de madeira ou sob os trilhos, aranhas fazendo ninhos nas estruturas da ferrovia e até mesmo ovos – cenas improváveis ou impossíveis de serem vistas em rodovias.
Modo como os veículos circulam: numa rodovia, toda a parte asfaltada está disponível para que os pneus dos automóveis passem por ela, enquanto numa ferrovia os rodeiros (as “rodas”) do trem necessariamente têm que passar por cima dos trilhos. Ainda que para animais de maior porte essa diferença não seja relevante (provavelmente serão atropelados caso um veículo em movimento os atinja, seja em ferrovias ou rodovias), animais de pequeno porte só serão atropelados numa ferrovia se estiverem “empoleirados” em cima dos trilhos. Em outros casos, o trem passará sobre o animal sem qualquer tipo de contato. Embora esse seja um fator que proporcione menos fatalidades por parte das ferrovias, nelas são frequentemente observados animais com os órgãos internos saindo pela boca. Esse seria um efeito do deslocamento de ar da passagem dos trens quando o animal está entre os trilhos e o trem passa acima dele, o que geraria uma espécie de vácuo e um estouro interno dos animais. A esse fenômeno, ainda não oficialmente comprovado, é dado o nome de barotrauma
Outra questão das ferrovias é que os trilhos representam uma estrutura vertical, algo que as rodovias não possuem. Lembrando que a barreira é dupla! São dois trilhos, dois obstáculos a serem superados. Nesse sentido, uma parcela dos animais de pequeno porte que tenta cruzar de um lado para o outro da ferrovia não consegue atingir seu objetivo. É o caso de aranhas-caranguejeiras e de várias espécies de anfíbios, jabutis e cágados. Na maior parte dos casos, acredita-se que, no processo de tentativa de travessia, os animais acabem tendo algum tipo de estresse térmico e venham a óbito. No Maranhão, às 14 h, um dormente de madeira pode atingir 51 °C!
Sinuosidade (e velocidade): outra variável frequentemente deixada de lado em comparações entre os tipos de infraestrutura viária é a sinuosidade. Ferrovias necessitam traçados sem curvas fechadas para que suas longas locomotivas sejam capazes de trafegar numa velocidade média sem riscos de descarrilamento. Todavia, uma pista com pouca sinuosidade pode possibilitar altas velocidades. No Japão, por exemplo, em breve entrarão trens que circularão a uma velocidade máxima de 400 km/h. Nesse contexto, para que um animal consiga escapar de um veículo em movimento, o tempo de reação deve ser bastante rápido. Por outro lado, para animais que detectam veículos em movimento, como aves e mamíferos, a presença de curvas pode dificultar o avistamento dos automóveis e ocasionar um maior número de fatalidades.
Estas são apenas algumas diferenças – e similaridades – entre rodovias e ferrovias. Em várias delas existem fatores que podem ser favoráveis a um ou outro tipo de infraestrutura no sentido de poupar vidas animais. Entretanto, mesmo que a ecologia de ferrovias venha se desenvolvendo nos últimos anos, ainda existe um longo caminho a se percorrer para compreender melhor como se dá a interação da fauna com as estradas de ferro e, principalmente, em como reduzir os impactos negativos.
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)