Biólogo, mestre em Ecologia e agente de fiscalização ambiental do Ibama
nalinhadefrente@faunanews.com.br
A luta entre animais da mesma espécie ou de diferentes espécies foi caracterizada como maus tratos já em 1934 pelo Decreto n° 24.645. No seu inciso XXIX do artigo 3°, ele definia, entre outras ações, ser maus tratos: realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécie ou de espécies diferentes, tourada e simulacros de touradas, ainda mesmo em lugar privado. Atualmente, maus tratos é considerado crime com base no artigo 32 da Lei n° 9.605/1998 e a Constituição Federal proíbe em seu artigo 225 as práticas que submetam os animais a crueldade.
Alguns praticantes da rinha de galos, ou seja, criminosos, argumentam que eles não provocam ferimentos nos animais, pois são os próprios galos que se machucam. Sobre isso, precisamos nos questionar: por que os galos brigam?
Além da total ilegalidade da atividade, ela se baseia em uma falsa premissa de instinto combatente que, na verdade, não passa do instinto de territorialidade manipulado para favorecer a contenda.
– Na natureza, os recursos são limitados. Assim, normalmente, não existem alimentos, água e local para ninhos, entre outros recursos, suficientes para todos os indivíduos;
– isso provoca competição intra (dentro da mesma espécie) e inter-específica (entre espécies diferentes), sendo que essa competição poderia resultar em lutas que feririam ou matariam os animais;
– para evitar lutas desnecessárias, os animais desenvolveram mecanismos para evitar a competição direta, ou seja, para não lutarem;
– o instinto de territorialidade busca a proteção exclusiva de recursos e, para evitar o confronto, os cães marcam seu território com urina, os passarinhos cantam e os galos também. Normalmente, os galos se afastariam de um território já ocupado por um outro mais forte.
A seleção artificial dos galos favorece aqueles que possuam o instinto mais forte. Tanto que alguns galistas argumentam que não há como reproduzi-los sem antes verificar quais são os melhores na luta. Ou seja, a criação dos animais se confunde com a luta entre eles.
Para as lutas, os galistas provocam condições artificiais, mas fingem que são naturais para os animais e para justificar seus crimes:
– os animais são colocados no “tambor” (arena de luta);
– os animais são emparelhados para a luta em igualdade de condições (peso), a fim de que um não leve vantagem sobre o outro. Isto até pode parecer justo, mas é exatamente o que faz ambos os animais se empenharem e lutarem até se destroçarem. Os dois consideram ter chances de vencer;
– os animais são atiçados uns contra os outros;
– esporas artificiais e biqueiras de metal são utilizadas.
Quando os criminosos são flagrados praticando a rinha, o que acontece com eles? Atualmente, o artigo 32 da Lei nº 9.605/1998 estipula pena de seis meses a um ano e multa. Na prática, como para outros crimes de maus tratos, ninguém vai preso.
O que realmente importa para os criminosos? Resposta: permanecer com seus galos, pois um galo campeão pode valer R$ 5 mil, R$ 20 mil , R$ 45 mil ou mais, dependendo do tipo de rinha e de quantas vitórias ele possui. Para que as ações de fiscalização ou policiamento de rinhas sejam realizadas, é importante a apreensão dos animais. Na legislação atual, se os animais não forem apreendidos ou se forem e ficarem com os criminosos como fiéis depositários, para eles não haverá problema nenhum.
A apreensão de galos é sempre uma complicação e um dilema para a fiscalização ou para a polícia que a realiza. Em uma rinha é comum a apreensão de 80 ou mais de cem galos. E o que fazer com eles? Os animais não podem ser colocados juntos, precisam de gaiolas separadas. Algumas vezes já se conseguiu socializar os animais, mas não na escala e velocidade necessária após uma apreensão. A manutenção dos animais com os criminosos significa que eles continuarão sendo usados nas rinhas, então não é opção. Deixar os galos no local para buscar depois significa que os campeões, ou seja, os mais utilizados nas rinhas e mais valiosos para os criminosos serão trocados por outros animais.
Considerando tratar-se de animais domésticos, os galos apreendidos poderiam ser destinados para voluntários. Todavia, essa opção encontra o inconveniente de que tais voluntários deveriam ser de inquestionável idoneidade em razão do alto valor vinculado aos espécimes campeões. Assim, tal destinação pode ser eventual, mas não seria suficiente para atender a todos os espécimes advindos de uma grande apreensão. Ademais, a área na qual os espécimes ou espécime seriam encaminhados deveria dispor de segurança que evitasse seu furto ou roubo. Outro problema é o registro oficial do destino para onde foram enviados os animais, o que poderia possibilitar ao criminoso rastrear para recuperar (furtar, roubar ou negociar) o galo apreendido.
Na estrutura pública existente, vislumbra-se apenas os centros de controle de zoonoses como locais de possível manutenção de galos apreendidos. Ressalva-se, porém, que os espécimes devem ser mantidos separados e, portanto, usualmente, tais locais não se encontram preparados para recebê-los. No caso de uma apreensão de cem galos, isso significa a necessidade de cem gaiolas individuais. Outra questão seria relativa à manutenção de cada animal em uma gaiola individual de qual tamanho? Por quanto tempo?
Em razão do exposto, ressalta-se:
– a manutenção dos galos com o infrator ainda os sujeitará a maus tratos, pois continuarão sendo utilizados nas lutas;
– a destinação para voluntários enfrenta o fator complicador da necessidade de idoneidade e segurança no local de destino;
– os centros de triagem (Cetas) do Ibama são direcionados para animais silvestres e, assim, incompatíveis, com a recepção de espécies domésticas;
– os centros de controle de zoonozes, das estruturas públicas, seriam, talvez, a melhor opção de manutenção temporária, mas a destinação final continuaria indefinida.
Em 17 de dezembro de 2019, um partido político entrou com ação no Supremo Tribuna Federal questionando a ilegalidade do abate de animais apreendidos. No corpo do documento, os exemplos citados são de galos de briga, pois esse é o foco da ação.
Esse partido é o mesmo do de um senador conhecido por defender a criação de galos combatentes no Congresso Nacional. Não acham interessante o súbito interesse desse partido pelo bem estar dos animais? Mas não qualquer bem estar. Eles não entraram com ação para que as galinhas de granja não sofram debicagem (tenham seus bicos cortados); não questionaram os milhões de pintinhos machos triturados vivos diariamente na indústria de frangos, não falaram contra veículos de tração animal, os pássaros mantidos em gaiolas sem poder voar, as galinhas aglomeradas em granjas, os bois sendo transportados vivos em navios no oceano, e não propuseram ação específica para cães ou gatos abandonados. Eles também não se importaram com os jegues abandonados no Nordeste, não questionaram que os mesmos galos combatentes com os quais aparentemente se preocupam são mutilados, sendo-lhes cortada as esporas, a crista, as barbelas e os brincos.
Eles focaram nos galos de briga apreendidos em ações de fiscalização ou policiamento.
Ante o exposto, requerem na ação:
– a concessão da medida liminar ad referendum do tribunal pleno para que seja declarada a inconstitucionalidade da norma, sem redução de texto, com a exclusão da interpretação que possibilita o abate dos animais apreendidos conferida aos artigos 25, parágrafos 1º e 2º (com redação conferida pela Lei 13.052/2014), e 32 da Lei 9.605/1998 e os artigos 101, 102 e 103 do Decreto 6.514/2008, nos termos do parágrafo 1º, do artigo 5º, da Lei nº 9.882/1999, impedindo de imediato o seu abate, considerando a extrema urgência da medida.
Em 30 de março de 2020, a liminar do Ministro do STF decide:
“(…) Ante o exposto, com base no artigo 5º, parágrafo 1º, da Lei 9.882/1999, e artigo 21, V, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), defiro a medida cautelar pleiteada para: a) determinar a suspensão de todas as decisões administrativas ou judiciais, em âmbito nacional, que autorizem o sacrifício de animais apreendidos em situação de maus-tratos.”
A primeira coisa a se atentar é que a ação, embora seja genérica nas análises legais, ela é específica nos exemplos relativos à galos apreendidos em rinhas, demonstrando claramente sua preocupação original. Infelizmente, a liminar do STF também foi genérica e, portanto, não se limitou a apenas um grupo de animais. Alcançou todos.
Nesse sentido, a decisão é importante para a proteção pois impede que cães, gatos, cavalos, jegues e outros animais possam ser mortos após apreensão em razão de maus tratos. Lógico que os galos também deveriam gozar dessa proteção. Mas, por mais contraditório que aparente retirar um animal da rinha e abatê-lo, não é crime o abate de galos no Brasil, desde que procedido dentro das regras do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento. No que se refere aos galos apreendidos nas rinhas, deve-se considerar que, continuando com os galistas, eles morrerão também. Mas morrerão lutando e sofrendo nas lutas. É hipócrita que os mesmos criminosos que colocam os galos para lutar, questionem seu abate.
Mas o posicionamento de proteção de qualquer vida não é incoerente com a luta da proteção animal. Se o processo houvesse sido movido pela proteção animal, realmente poderíamos ter a certeza de seu objetivo primário em proteção da vida e de se evitar os maus tratos. No entanto, não ter os galos abatidos sempre foi uma reivindicação dos criminosos que praticam rinha no Brasil. Isto porque eles sabem que, sem o abate, eles ficarão como fiéis depositários e continuarão a submeter os animais à crueldade das rinhas.
Sempre foi interesse dos praticantes de rinhas de galos que as aves apreendidas não fossem abatidas. Sempre ingressaram com ações apontando maus tratos, mesmo que o abate seguisse todos os critérios de abate humanitário estipulados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Interessante que eram sempre animais mutilados ou machucados pelas lutas que eles mesmos provocaram.
Lógico que o abate de animal apreendido em decorrência de ter sido submetido a maus tratos aparenta uma indecifrável incongruência. Certamente, a decisão não é e nunca foi fácil. A decisão aparenta ser somente não matar galos apreendidos, mas na verdade, a decisão é matar galos com crueldade e sofrimento enquanto se dilaceram brigando ou matá-los com técnicas humanitárias. É fácil entender que a liminar do ministro do STF aparentemente protege a todos os animais, mas não se enganem: essa é uma decisão que atende, e muito, aos criminosos que praticam a rinha de galos no Brasil. Por quê? Porque os criminosos sabem que, na prática, a impossibilidade de abate dos galos resultará em diminuição de ações de fiscalização ou que eles serão os fiéis depositários dos animais.
Cada um deve se posicionar, mas é importante que todos saibam os bastidores e as consequências para que, ao menos, se compreenda a amplitude e todos os desdobramentos de qualquer posição defendida.
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