Maus-tratos: relembrando da “Lei Áurea dos animais”

“É melhor reinar no inferno que servir no céu.” – John Milton.

Essa famosa frase da obra Paraíso Perdido define o ápice da sede por liberdade e poder de seu protagonista: traçar o próprio destino é sempre o melhor caminho.

Sempre me lembro dessa passagem do poema épico quando a relaciono ao destino que traçamos para nossos companheiros não-humanos, que sofrem muitos reflexos negativos por dividir essa biosfera conosco. Na ânsia de reparação, em alguns momentos, os pensadores humanos acertam a mão.

Nos anos em que fiz parte da equipe que lecionava na cadeira de Crimes Ambientais da Academia Nacional de Polícia, por vezes discutimos sobre a melhor normativa publicada no país relacionada a maus-tratos aos animais. Refiro-me ao Decreto nº 24.645, de 10 de julho de 1934. Sua aplicabilidade, clareza e objetividade foram exemplos.

A proteção dos direitos dos animais na legislação brasileira

Num momento da história em que as leis se apresentavam bem mais esparsas, uma ONG denominada União Internacional Protetora dos Animais (Uipa), fundada em 1895, apresentou  proposta que veio a ser adotada como decreto pelo então presidente da República, Getúlio Vargas. Sua chegada abrangeu todo o território nacional, tendo em vista que, mesmo diante da existência de leis de proteção esparsas, principalmente municipais, estas por sua atuação limitada, não alcançavam toda a fauna existente no país.

Na ocasião, o Brasil passava por momento conturbado: um golpe de Estado retirou do poder o então presidente Washington Luís e a Constituição de 1891 (primeira da era republicana) deixou de vigorar. Nesse estado de exceção, o país passou a ser governado, basicamente, por decretos.

A Uipa, aproveitando a recente publicação do Decreto n° 23.672 (Código de caça e pesca) em janeiro de 1934 e, baseando-se em normas esparsas de outros estados estrangeiros, publicou a proposta da norma em artigo no jornal O Estado de São Paulo. Surpreendentemente e, por certa pressão de seu Ministro da Agricultura, Juarez Távora, o presidente aprovou, transformou-a em decreto e determinou sua publicação.

São estas as normas que foram utilizadas como referência: Lei de Proteção aos Animais inglesa, de 1807 (neste contexto, a legislação inglesa teve grande participação); Lei Grammont da França, de 1850; Lei Federal Argentina, de1891; Lei norte-americana n.º 463, “de proteção geral aos seres inferiores”; e o artigo 491 do Código Penal italiano, de 1889.

Partindo da Constituição Federal, temos estabelecido em seu artigo 255, parágrafo 1°, inciso VII, a proteção da fauna: “vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.”

A Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998), em seu artigo 32, estabelece penas de detenção para quem “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. Com exceção de seu parágrafo 1º que especifica penas nos casos de experiência dolorosa ou cruel em animal vivo para fins científicos e, em seu § 1º-A (recentemente incluído pela Lei nº 14.064, de 2020 e conhecida como Lei Sansão), que especifica abusos e maus tratos contra cães e gatos com penas de reclusão de dois a cinco anos, percebemos a norma um tanto genérica. Devemos observar, portanto, que o artigo 32 da Lei 9.605/1998 tipificou, mas não definiu, o que se deve entender por maus-tratos.

Retornando ao Decreto nº 24.645/1934, tínhamos condutas bem mais detalhadas.

Iniciando pelo seu artigo 2º, a norma já conferia aos animais a possibilidade de “estarem em juízo, assistidos pelo Ministério Público, por seus substitutos legais ou pelos membros das sociedades protetoras dos animais.” Seu amparo pelo Estado ficou caracterizado:

Artigo 2º – Aquele que, em lugar público ou privado, aplicar ou fizer aplicar maus-tratos aos animais, incorrerá em multa de 20$000 a 500$000 e na pena de prisão celular de 2 a 15 dias, quer o delinquente seja ou não o respectivo proprietário, sem prejuízo da ação civil que possa caber.

• 1º A critério da autoridade que verificar a infração da presente lei, será imposta qualquer das penalidades acima estatuídas, ou ambas.
• 2º A pena a aplicar dependerá da gravidade do delito, a juízo da autoridade.
• 3º Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais.

Em seus incisos do artigo 3º, temos abaixo alguns exemplos do que caracterizava maus-tratos:

• I – praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal;
• II – manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz;
• III – obrigar animais a trabalhos excessivos ou superiores às suas forças e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo;
• IV – golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas em beneficio exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interesse da ciência;
• V – abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem coma deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária;
• VII – abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação;
• XVI – fazer viajar um animal a pé, mais de 10 quilômetros, sem lhe dar descanso, ou trabalhar mais de 6 horas continuas sem lhe dar água e alimento;
• XVII – conservar animais embarcados por mais da 12 horas, sem água e alimento;
• XIX – transportar animais em cestos, gaiolas ou veículos sem as proporções necessárias ao seu tamanho e número de cabeças;
• XXV – engordar aves mecanicamente;

… e por aí vai. Este é um pequeno exemplo dos 31 incisos que criaram um verdadeiro acervo de proteção à dignidade animal.

Como seria se o decreto ainda estivesse em vigor

Entendo que as normas devem ser objetivas, dispensando as irrelevâncias, para que tenhamos um produto rápido para consulta e entendimento. Hoje, trabalhamos com a genericidade, a qual pode ser contestada em qualquer momento e sabe-se lá por quais interesses.

Se a saudosa norma estivesse em vigor, os reflexos diretos nos setores de transporte, trabalho, confinamento e concentração de animais seria incontestável.

No modelo revogado de 1934, tínhamos bases estabelecidas para autuação na área administrativa e criminal. Já passamos por muitos exemplos de regulamentos alterados ou suprimidos quando não se tornaram “convenientes”.

Por fim, a explicação do título “Lei Áurea dos animais” do artigo: em publicação datada de 20 de outubro de 1934 do Diário da Tarde (jornal de Curitiba), uma coluna noticiava que:

“A Uipa informa que o Chefe do Governo Provisório decretou lei de proteção aos “seres inferiores” e indica que a publicação da ‘Lei Áurea dos Animais’ prestará um serviço à coletividade, promovendo a cultura e desenvolvendo os bons sentimentos em aqueles que, por ignorância ou maldade até aqui tem negado direitos aos entes que por natureza são mudos e indefensáveis”.

Recomendo a leitura do referido Decreto 24.645/34 para comparação.

Nota: existem controvérsias jurídicas sobre o Decreto 24.645, de 10 de julho de 1934. É fato que não existe mais o sistema penal idealizado através dele. Foram revogados, tacitamente, os artigos 2º (caput e §§ 1º e 2º), 8º e 15 do Decreto, permanecendo em vigor os demais artigos, inclusive o §3º, do artigo 2º, como parte do atual estatuto jurídico geral dos animais. Na década de 1940, a Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/41) transformou em contravenção penal a crueldade contra animais, cominando aos infratores penas e multas, nos termos de seu artigo 64, posteriormente revogado em razão do artigo 32 da Lei 9.605/98, que passou a considerar o abuso, os maus-tratos, o ferimento ou a mutilação de animais como crime. A atual Constituição, trouxe expressa  proibição à crueldade (art. 225, §1º, inciso VII) Em outras palavras, somente os artigos (ou parte deles) que estabeleciam crimes e suas respectivas penas foram revogados, tacitamente, pelos dispositivos penais posteriores. Alguns juristas entendem que tal norma legal ainda está, em parte,  vigente e com aptidão para auxiliar na caracterização do crime de maus-tratos (art. 32, Lei 9.605/1998).De fato, alguns juízes criminais, ao aplicar o art. 32 da Lei 9.605/1998, evocam alguns dos incisos do art. 3º do Decreto 24.645/1934, para especificar melhor a tipicidade e a antijuridicidade da conduta.

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