Por Barbara Zucatti
Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestranda no Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da mesma instituição (NERF-UFRGS)
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Hoje venho relatar sobre as minhas percepções e sentimentos em relação ao mundo do monitoramento de fauna atropelada, no qual entrei recentemente. Nesse monitoramento, cuja importância já foi abordada por aqui em junho de 2016, dezembro de 2018 e agosto de 2019, pesquisadores se dedicam dias em campo, percorrendo centenas de quilômetros em rodovias na busca de avistar as carcaças, correndo perigos relacionados ao trânsito de veículos em si e em relação à segurança pessoal.
Apesar dos riscos, a experiência de um monitoramento de fauna atropelada acaba sendo um privilégio inconveniente: nesse cenário contraditório, torna-se possível observar nas carcaças as peculiaridades da nossa fauna, muitas vezes despercebidas por nós.
Durante um monitoramento que participei recentemente, tive a oportunidade de observar essas peculiaridades, com todos os detalhes e formas (às vezes distorcidas) dos animais. Detalhes esses que no dia a dia são quase impossíveis de serem percebidos, seja por não conseguirmos avistar esses animais ou porque quando os avistamos, o fazemos de tão longe que só percebemos a silhueta e as cores.
Me surpreendi muito com a quantidade e variedade de aves que encontramos atropeladas. Em um desses encontros, vi algumas penas com características peculiares de um tesourinha (Tyrannus savana), uma espécie popularmente conhecida por ter as penas da cauda alongadas em uma forma bifurcada, como uma tesoura. Para minha surpresa, essa não era a única característica chamativa da espécie. Ao lado do aglomerado de penas, pude perceber a cabeça da ave mostrando um padrão de penas inédito (para mim): penas predominantemente pretas, mas com algumas bem amarelas no centro. Já avistei muitas tesourinhas em várias saídas de campo, mas nunca havia visto um penacho amarelo no centro da cabeça. Isso porque, provavelmente, aves da espécie mostram essas penas apenas no período reprodutivo.
Outra surpresa para mim, agora relacionada à decomposição das carcaças na pista, foi perceber a mudança de cor de uma cobra-verde (Philodryas olfersii) ao longo dos dias, que se alterou de um verde chamativo para um azul turquesa.
Alguns dos outros privilégios, que eu gostaria de ter vivenciado em um cenário menos triste, foi poder ver de perto os padrões da pelagem dos gatos silvestres, os detalhes dos dedos do mão-pelada (Procyon cancrivorus) e me admirar com o tamanho dos ouriços (Coendou spinosus) e tatus.
Dentre todas as oportunidades que tive durante o curso de graduação em Biologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, essa foi a única que me possibilitou ver muitos animais pela primeira vez. Mas foi também a mais dolorosa, porque tive o ônus de vê-los sem vida.
Os dados de monitoramentos de fauna atropelada são fundamentais na implementação de medidas mitigadoras para reduzir o impacto das rodovias, além de proporcionarem um conhecimento mais elaborado da nossa fauna. Apesar de poder ver em detalhes características únicas de cada indivíduo e espécie, nenhuma experiência, por mais interessante que seja, paga o preço dessas vidas.
A fauna silvestre é muito mais bonita viva.
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