Reabilitação significa devolver o paciente, após lesão ou enfermidade, a suas atividades físicas ou mentais anteriores. Para os centros de triagem e reabilitação de animais silvestres (Cetras) espalhados pelo país, significa o maior desafio que encontramos na busca de cumprir nossa missão principal, que é a reabilitação visando a devolução dos animais à vida livre.
Neste ano, o Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ibama no Distrito Federal recebeu, até o dia 29 de setembro, o total de 4.503 animais silvestres provenientes de resgates, apreensões e entregas voluntárias. De acordo com dados levantados pelo Sistema Nacional de Gestão dos Cetas, o Siscetas, do número de óbitos totais, 47,7% das mortes aconteceram nas primeiras 72 horas após o recebimento desses animais. Esse dado nos traz a informação de que do número total de animais que dão entrada na unidade, metade dos que foram a óbito chegaram em condições clínicas críticas, debilitados, com lesões graves ou até mesmo com problemas fisiológicos crônicos que impossibilitam que o organismo reagisse ao mínimo de desafio ambiental.
Atendimento a animais resgatados
Outro dado relevante é que dos óbitos nas primeiras 72 horas de recebimento na unidade, neste mesmo período, 78,5% foram de animais resgatados. As principais causas que levam aos resgates, de acordo com a experiência adquirida ao longo dos últimos três anos, são atropelamentos, inclusive de aves (imagens 1 e 2); choques elétricos, ataque de animais domésticos e interação entre humanos e animais com lesão provocadas, como vassouradas e facadas (imagem 4), cortes profundos por linhas de pipa ou infecções cruzadas interespécies (imagem 3).
Para ilustrar, trago o caso de um macho adulto de sagui-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata) que foi o último do histórico de três saguis que chegaram no intervalo de 15 dias, provenientes do mesmo local de resgate: uma creche da região. Os animais encontravam-se caídos sem causa aparente ao lado de uma árvore e debilitados. A evolução do caso aponta para crises convulsivas com progressiva perda de consciência até o óbito. Felizmente, com o apoio da Diretoria de Vigilância Ambiental em Saúde de Brasília foi possível identificar a contaminação pelo Herpesvirus simplex tipo 1 (HSV-1).
Esse vírus é o mesmo responsável pelo herpes humano que causa pequenas lesões ao redor dos lábios, muito comum em episódios de baixa imunidade e que geralmente regride espontaneamente em humanos. Em saguis, no entanto, causa uma infecção disseminada e fatal.
Atendimento de animais apreendidos
Em nosso levantamento de dados, foi possível identificar também que dos óbitos nas primeiras 72 horas do recebimento, 13,02% eram animais provenientes de apreensões. As apreensões decorrem tanto da interceptação do tráfico de fauna como da busca ativa pelos órgãos de fiscalização por animais silvestres mantidos em cativeiro ilegalmente. No caso de tráfico, o transporte em condições cruéis e insalubres, já amplamente conhecidas, traz até os Cetras animais profundamente desidratados, desnutridos e estressados.
Para uma ave, como um canário-da-terra (Sicalis flaveola), que pesa em média 20 gramas e tem seu batimento cardíaco mínimo de 120 batimentos por minuto, esse quadro pode ser determinante para sua sobrevivência. Adiciona-se a isso o acondicionamento em pequenas caixas, onde não a ventilação é insuficiente, ou seja, baixa oxigenação, há temperaturas elevadas, além de grande concentração de fezes por causa do número elevado de animais por compartimento (imagem 5).
E sim, temos procedimento padrão para recebimento de grandes apreensões: avaliação individual, terapia com oxigênio, fornecimento de glicose diretamente no bico, além de Glicopan, laranja e pepino nos recintos (alimentos ricos em água e micronutrientes). Mas algumas vezes o atendimento de emergência não consegue restabelecer mecanismos fisiológicos já em falência.
Atendimento a animais entregues pela população
Ainda se tratando de apreensões, temos os animais silvestres mantidos de forma irregular em cativeiro. Abordarei esses casos juntamente com os de entrega voluntária, que perfazem 7% dos óbitos nas primeiras 72 horas do recebimento na unidade. Entregas voluntárias são feitas por pessoas físicas que mantinham animais silvestres em suas residências, de forma irregular.
Dentro da ideia de posse responsável, concebemos que esses animais devam ser acompanhados por veterinários e biólogos especializados em clínica e manejo de silvestres e que suas recomendações indicariam as formulações nutricionais adequadas para cada espécie, principalmente no caso de filhotes. No entanto, nossa realidade nos centros de triagem nos mostra que a realidade é bem diferente.
De acordo com a espécie, é possível ver uma infinidade de manejos incorretos que desencadeiam alterações metabólicas e fisiológicas muitas vezes irreversíveis. Assim acontece com o cágado com deformidade de casco (causada provavelmente pelo manejo alimentar inadequado associado a possível trauma), o jabuti com descolamento da queratina do casco (provavelmente por manejo alimentar e ambiental inadequado), o filhote de ararajuba com todas as penas das asas cortadas, o sagui-de-tufos-pretos filhote com doença óssea metabólica, com deformidades ósseas incompatíveis com a vida (manejo alimentar inadequado), os passeriformes com hipovitaminoses crônicas (manejo alimentar inadequado) e os psitacídeos com esteatose hepática (gordura no fígado), insuficiência renal e até mesmo intoxicação por metais pesados crônica (aves que costumam bicar grades de janelas e gaiolas, além de manejo alimentar e ambiental inadequado).
A lista é extensa e todas elas levam à um quadro clínico somente: falência de processos metabólicos e fisiológicos, que são responsáveis pela resposta do organismo à exposição a patógenos, incapacidade orgânica de se adaptar à uma nova alimentação e, por fim, impossibilidade de que o indivíduo prevaleça após os fluxos necessários para a reabilitação.
Reabilitar é a nossa missão primordial. E, sim, reabilitar é o que faz qualquer esforço valer a pena. Não existe emoção maior que ver uma arara reabilitada voando para fora de sua caixa de transporte, com suas asas batendo naquele movimento sincronizado e suave que a levam lá para o céu.
Mas para que esse momento aconteça, muito foi necessário: equipes de resgate capacitadas para manejar animais em situação de risco de forma segura, equipes capacitadas em emergências veterinárias nos Cetras, infraestrutura para recebimento de casos complexos, parcerias com universidades e hospitais veterinários que ofereçam o suporte após a estabilização dos animais que chegam em situação crítica e vulnerável, infraestrutura básica para fornecer ambientes seguros e higiênicos para animais críticos, entre tantas outras necessidades.
Acima de todos os pontos citados, é essencial a contribuição de cada um de nós. Como cidadãos, devemos entender e agir no sentido de que a beleza da vida livre é um direito de todos. Para isso, deve-se prezar pela utilização consciente dos espaços urbanos e pela conservação da biodiversidade, não apoiando o tráfico de fauna ou mantendo animais silvestres de forma irregular, e ainda primando pela relação saudável entre humanos e fauna, respeitando e compreendendo suas diferentes necessidades.
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