Bióloga com mestrado e doutorado em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A paleontologia foi o foco de sua pesquisa no doutorado.
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Nossa espécie tem uma compreensão única sobre o tempo, sua passagem, sua importância e como ele influencia direta e indiretamente nossa vida cotidiana. Com tal entendimento, fica fácil estabelecer relações de causa e efeito se valendo de eventos passados para explicar o presente que contemplamos. Em termos de fauna, é simplesmente impossível entender a diversidade atual, sua distribuição e sua evolução sem o entendimento pretérito de suas linhagens, ou seja, sem as pistas que os fósseis nos deixam.
Mas desde Einstein, temos claro entendimento que não podemos falar de tempo desvinculado do espaço e, por isso, não menos importante é compreender ONDE, QUANDO e COMO tais organismos pretéritos compuseram as faunas do passado. Nessa coluna mensal, eu, Lucy Gomes de Souza, os levarei a uma viagem pelo túnel do tempo que a paleontologia nos permite criar. Entretanto, como todo voo e viagem, é necessário que eu passe algumas instruções para vocês queridos passageiros. Nessa primeira postagem, tratarei de algumas bases básicas que serão recorrentemente necessárias nesta e nas próximas viagens. Espero que gostem!
Talvez, para a paleontologia, o termo mais importante seja “fóssil”! O termo fóssil (do latim fossilis) se refere originalmente a qualquer coisa extraída da terra. Esse sentido foi sendo ressignificado e, quando a ciência finalmente reconheceu que algumas estruturas obtidas junto a rochas tinham origem orgânica, nós passamos a chamá-los de fósseis. Portanto, fóssil passa a se referir a todo resto direto (exemplo, um osso fossilizado) ou indireto (exemplo, fezes ou pegadas fossilizadas) de organismos do passado.
O ser humano possui um grande fascínio pelo tempo e somos, de certa forma, obcecados por marcar sua passagem. Na Paleontologia isso não é diferente e, junto à Geologia, diversos estudos são feitos visando uma sistematização das rochas que existem no planeta bem como o possível momento do passado em que foram formadas. Entender a origem de uma rocha e sua idade é fundamental para o estudo de qualquer fóssil, pois somente assim podemos dar um contexto para a existência daquele material e para o organismo que um dia existiu e originou tal fóssil. Diante disto, nós humanos nos valemos de grandes mudanças na diversidade dos organismos, extinções e mudanças na Terra para separar nosso passado em Eras, Períodos e Idades. A figura abaixo nos ajuda a entender a extensão desse tempo pretérito e alguns dos principais eventos que usamos de balizadores.
O Brasil, devido à sua extensão territorial gigantesca, proporciona aos geólogos e paleontólogos o acesso a uma grande variedade de tipos de rochas formadas nos mais variados períodos do planeta. Essas rochas, principalmente aquelas que contém fósseis incrustados, nos ajudam a remontar o passado do nosso planeta e a entender o que aconteceu nessas terras que hoje associamos ao território brasileiro. Sendo assim, nos próximos artigos, vocês se tornarão cada vez mais familiarizados não só com o nome das épocas e períodos geológicos como também das bacias e formações que nomeiam os conjuntos de rochas de onde vem os fósseis.
Parecerão muitos nomes e números, mas acreditem, aos poucos vocês irão se acostumando e construindo em sua mente diferentes mapas de diferentes épocas do Brasil e, o mais legal, habitado por criaturas incríveis que vos apresentareis.
Ao fim dessas breves instruções, é hora de apertar os cintos para nossa primeira viagem, que começa a mais ou menos 13 mil anos atrás. Como primeiro animal do passado do Brasil, vamos falar do registro indubitável de Homo sapiens mais antigo da América do Sul: a espécime fóssil chamada de Luzia (Figura abaixo)!
Mas, péra aí… Homo sapiens não é o ser humano? Este site não é sobre fauna? Pois é querido leitor atento, nós, seres humanos, SOMOS animais e apesar de hoje em dia termos criado esse pretenso e ilusório distanciamento da natureza com as cidades, no passado, estávamos ainda mais diretamente inseridos nos ecossistemas sendo presas e predadores!
Em específico e portanto, o animal que falaremos hoje, teve seus restos fósseis encontrados no município de Pedro Leopoldo (MG), em escavações na gruta conhecida como Lapa Vermelha. Essa gruta é particularmente famosa pois entre os anos de 1835 e 1845, escavações conduzidas pelo naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (Copenhague, 14 de junho de 1801 – Lagoa Santa, 25 de maio de 1880; é considerado o pai da paleontologia e da arqueologia no Brasil) recuperaram milhares de fósseis de animais extintos e 31 crânios humanos (datados do Pleistoceno, ou seja, de +/- 2,588 milhões a 11,7 mil anos atrás). Esses crânios humanos passaram a ser conhecidos como o Homem de Lagoa Santa.
Mas as ossadas fósseis da protagonista de nossa história de hoje só foram encontradas em 1970, pela missão arqueológica franco-brasileira chefiada pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire (1917-1977). Em 1995, essa ossada até então conhecida apenas como “esqueleto da Lapa Vermelha IV” ou “Lapa Vermelha IV Hominídeo 1”, depositado nas coleções do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi estudada pelo pesquisador Walter Neves que, sabendo se tratar de um espécime fêmea, a apelidou como “Luzia”. E assim permanece até os dias de hoje. Mas é claro que os estudos do referido pesquisador não se resumiram a dar um apelido a ela e sim entender um pouco a biologia desse animal e qual sua importância para a colonização da América do Sul pela nossa espécie.
Dentre os resultados, podemos destacar resumidamente o fato de que as características cranianas de Luzia eram relacionadas às feições encontradas nas linhagens humanas de aborígenes atuais da Austrália e dos negros da África. Algumas reconstruções da face de Luzia foram feitas e evidenciam claramente essa proximidade com as linhagens anteriormente comentadas (Figura no alto da página).
Certo, mas o que isso gerou de novidade quanto à colonização humana da América do Sul? Por muito tempo acreditou-se que os primeiros Homo sapiens a colonizarem as Américas e daí conquistarem o território sul-americano seriam aqueles atribuídos a cultura Clóvis. No entanto, a presença de Luzia, a idade em que ela viveu e suas feições negroides são um forte indicativo de que pelo menos quatro mil anos antes da chegada do povo Clóvis, uma outra população humana associada à linhagem de Luzia teria conquistado as Américas!
Para entendermos melhor como nossa espécie conquistou as Américas e se distribuiu por esse continente, faz-se necessários mais estudos morfológicos, moleculares e ecológicos nos espécimes e materiais já conhecidos e a descoberta de novos. Além, claro, entender melhor a origem e evolução dos povos originários de nosso continente e qual a relação deles com a Luzia!
Independentemente de qual hipótese colonizatória esteja correta, o que sabemos até o momento é que a Luzia morreu com cerca de 20 anos de idade, tinha 1,50 metro de altura e, junto à sua linhagem, conviveu com animais fantásticos de nosso país, como, por exemplo, preguiças-gigantes, tigres-dente-de-sabre, mastodontes, gliptodontes e outros seres que irão, mensalmente, ser devidamente abordados por aqui!
Por fim, para encerrar o artigo de hoje, gostaria de lembrar a todos que, em 02 de setembro de 2018, o Museu Nacional teve sua estrutura principal, o Palácio, totalmente destruída por um incêndio, resultando na perda de centenas de milhares de exemplares das mais diversas coleções científicas ali abrigadas. Felizmente, dentre os materiais recuperados, foram encontrados os restos de Luzia, que, apesar dos danos, não foram totalmente carbonizados.
Nessa perspectiva de destruição e renascimento, deixo a reflexão para que repensemos nosso papel como animal e os impactos irreversíveis que estamos gerando na natureza. Espero que tenham gostado e até a próxima!
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