Por Thiago Mariani
Biólogo e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É vinculado ao Laboratório de Paleontologia e Osteologia Comparada da Universidade Federal de Viçosa e colaborador do Laboratório de Processamento de Imagens do Museu Nacional. Desenvolve pesquisas sobre a evolução de tartarugas, com foco em um grupo conhecido como Pleurodira.
tuneldotempo@faunanews.com.br
A ideia do artigo de hoje é abordar fósseis, mas não sobre um fóssil específico, ou melhor, sobre uma espécie extinta em particular. Hoje eu gostaria de fazer uma discussão sobre um termo bastante comum no dia a dia a das notícias paleontológicas e trazer uma perspectiva lógica sobre ele.
O termo em questão é “fóssil vivo”. Pois é, né? Ele é bastante utilizado nas comunicações de estudos sobre fósseis – e até em estudos sobre algumas espécies viventes! Isso porque a ideia dessa expressão é prática e facilmente captada pelas pessoas, porque implica em espécies que estão vivas, mas que também possuem fósseis catalogados.
São poucas as espécies às quais esse termo pode ser atribuído, então é fácil de encontrar exemplos. Duas clássicas espécies que ilustram essa expressão são o peixe celacanto (do gênero Latimeria) e o caranguejo-ferradura (do gênero Limulus), com fósseis tão antigos quanto do Mesozoico. Na verdade, os fósseis são muito parecidos com essas espécies, como se algumas características tenham sido mantidas “estáveis” por muitos milhões de anos, mas são espécies diferentes. Acreditava-se que o celacanto estava realmente extinto até um indivíduo ter sido pescado na costa africana em 1938.
Apesar de ser simples e direto, o uso dessa expressão é inadequado cientificamente e vamos saber o porquê. Mas antes, precisamos saber qual é a ideia por trás do termo.
Seu uso comumente acontece para espécies viventes que são muito parecidas com seus fósseis. É como se não tivesse havido mudanças morfológicas ao longo do tempo (e em alguns casos muito tempo se passou!). No entanto, não é possível assumir que não houve mudanças porque os conceitos modernos de espécie as consideram como entidades biológicas mutáveis. A perspectiva de se usar “fóssil vivo” decorre da subjetividade de escolher qual características olhar – e de como descrevê-las – nas espécies comparadas e na falta de indivíduos suficientes para se comparar. Isso leva a escolhas arbitrárias e intuitivas de características que são ressaltadas em detrimento de outras.
Algumas características mudam com menor frequência ou variam muito pouco ao longo do tempo, em função de uma fraca pressão seletiva. Ressaltar tais características levaria ao uso do termo “fóssil vivo”, mas ignora várias outras que poderiam distinguir uma espécie fóssil de uma vivente. Além disso, os fósseis já são artefatos naturalmente raros e representam, na maioria das espécies, uma parcela muito pequena (quando há mais de um indivíduo) da população existente no passado que foi preservada. Portanto, a observação das características e suas variações é circunstancial, podendo não representar a espécie em sua totalidade.
Classificação dos seres vivos
Mudando para a perspectiva da classificação dos seres vivos, atualmente se usam métodos que levam em conta a relação de parentesco entre eles. Assim, as espécies seriam conectadas por ancestrais, formando um diagrama que se parece com uma árvore que representa as relações entre elas. Esse diagrama é chamado de árvore filogenética ou cladograma, onde as espécies estão nas “pontas” e são chamadas de terminais, enquanto a relação entre elas é representada por ramos, se assemelhando a galhos de árvore. Nesse diagrama, algumas espécies estão mais próximas entre si e mais afastadas de outras e tais relações dependem de quais características elas compartilham. É claro que há características únicas de cada uma. Apesar de isso não ser importante para agrupá-las, é o que faz com que cada uma seja diferente das outras.
A lógica é agrupar por conjuntos. Cada espécie possui uma combinação única de características, formando um conjunto próprio (imagem 2). Algumas dessas características também são encontradas em outras espécies (ou compartilhadas), o que ajuda a traçar a relação de parentesco entre elas, e assim a árvore pode ser construída. Se dois terminais possuem o mesmo conjunto ou combinação de caracteres, significa que representam a mesma espécie. Assim, nesse sistema, é possível testar e definir uma espécie dentro de um arcabouço evolutivo.
E como os fósseis se encaixam aí? Do mesmo jeito que espécies viventes: são considerados terminais e, portanto, para serem considerados espécies diferentes devem possuir uma combinação própria de características. Uma vez que passam nesse teste, são considerados espécies em si e não podem mais ser atribuídos a alguma outra espécie, seja atual ou fóssil. Isso significa que o termo deve ser abandonado. Tampouco não devem ser chamados de ancestrais, pois sendo terminais representam uma etapa da evolução, ou ramo evolutivo, que teve início e fim em um caminho próprio, o que levou a espécie extinta a ter o seu conjunto de características. Os ancestrais são logicamente considerados hipotéticos e representam o ponto onde um ramo evolutivo se separou em dois.
No quesito tempo, fósseis são geralmente conceituados como restos de vida com pelo menos 10 mil anos. Isso não significa que as espécies precisam estar extintas. Muitas das espécies que conhecemos surgiram há mais tempo. Nós mesmos somos mais antigos do que 10 mil anos e nem por isso somos fósseis vivos.
Juntando tudo isso, o uso da expressão “fóssil vivo” é logicamente incorreto e inadequado na aplicação em caráter científico e dentro do panorama da sistemática (árvores filogenéticas). Seu uso deve ser evitado, portanto. Contudo, é bastante útil na comunicação fora dos artigos e da academia: é simples, direto e transmite claramente uma boa noção do que quer ser transmitido. Ainda assim, seu uso pode vir acompanhado de uma explicação mais clara sobre seu significado para que não haja confusões de interpretação, pois não é o mesmo que dizer que é o ancestral de outras espécies.
– Leia outros artigos da coluna TÚNEL DO TEMPO
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)