Por Thiago Mariani
Biólogo e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É vinculado ao Laboratório de Paleontologia e Osteologia Comparada da Universidade Federal de Viçosa e colaborador do Laboratório de Processamento de Imagens do Museu Nacional. Desenvolve pesquisas sobre a evolução de tartarugas, com foco em um grupo conhecido como Pleurodira.
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A gente conhece as serpentes atuais e sabemos que elas rastejam, certo? Quero dizer, elas não possuem braços e pernas. Mas sabe-se que o ancestral delas tinha patas em algum momento no tempo passado e uma pergunta bastante intrigante que surge quase automaticamente é como aconteceu a transição entre um animal com patas para outro sem patas. E mais: quando isso aconteceu?
Um dos fósseis mais importantes para se entender isso está no Brasil – e falarei mais dele adiante. Para além disso, há uma diversidade enorme de serpentes de outras épocas no país, todas elas com sua importância para a evolução dos grupos de serpentes, sua distribuição e relações com os ambientes onde viveram (e que trazem noções sobre as espécies viventes e seus habitat).
Pelo fato de o corpo das serpentes ser constituído por muitas vértebras, são elas as partes do corpo mais preservadas e comumente encontradas. Ao mesmo tempo, são ossos sensíveis à desarticulação e ao transporte (assim como o crânio) e, por isso, não são encontrados em qualquer tipo de ambiente deposicional. Rochas formadas em ambientes de alta energia, como rios, dificilmente terão fósseis de serpentes porque a água transporta esses elementos com facilidade e eles são posteriormente destruídos ou decompostos. Assim, os fósseis de serpentes são encontrados em rochas depositadas em ambientes mais parados, como lagos, planícies de inundação, pântanos etc.
Mesmo assim, o registro fóssil é grande, mas restrito a ambientes específicos. Então vamos começar a falar um pouco sobre eles.
A espécie mais antiga do nosso país foi encontrada em rochas do Cretáceo Inferior, de aproximadamente 115 milhões de anos. Ela se chama Tetrapodophis amplectus e é bastante controversa. Essa espécie possui uma mistura de características que existem em serpentes atuais com outras que não existem (exclusivas dela ou compartilhadas com outras espécies anteriores a ela na história evolutiva), mas o fato é que tem quatro patas e um corpo de cobra. Ela é intrigante simplesmente por isso. E pelo incrível fato de estar absolutamente bem preservada. Infelizmente, esse fóssil foi traficado e já discutimos sobre isso em outros textos na coluna ( 5 de agosto e 19 de agosto de 2022).
Outros dois materiais foram descritos. Um deles é a espécie Seismophis septentrionalis, da ilha do Cajual, no Maranhão, do começo do Cretáceo Superior. Os outros materiais são da bacia Bauru e não foram inteiramente descritos, apesar de terem sido classificados como pertencente ao grupo das serpentes aniliodes.
Mudando de era, chegando ao Cenozoico, há um registro com grande quantidade de serpentes para o Paleceno da bacia de São José do Itaboraí, no estado do Rio de Janeiro, com nove espécies conhecidas pertencentes às famílias Madtsoiidae, Aniliidae e Boidae. Curiosamente, uma das espécies é do gênero Corallus, que dá nome a algumas espécies viventes de serpentes da família Boidae (a família da jiboia comum, a Boa constrictor), como a suaçuboia (Corallus hortulanus), distribuída pela Amazônia, Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica.
Os demais registros de serpentes são do Mioceno, da formação Solimões, no Acre. Com exceção de duas espécies (Colombophis portai e Colombophis spinosus), as demais são representantes de espécies viventes das famílias Boiidae e Colubridae. Esses registros são bastante interessantes porque mostram a presença de espécies atuais na Amazônia desde o começo de sua formação e porque as espécies extintas possuem características atribuídas a hábitos semifossoriais ou semiaquáticos, o que ajuda na reconstrução paleoambiental da região e como os animais viviam nessa época.
Pulando para o Quaternário, o período no qual a nossa época – Holoceno – está contido, os fósseis são bastante distribuídos e diversos. Foram encontrados em vários estados brasileiros comumente encontrados em sistemas de cavernas. As espécies identificadas são das várias famílias existentes atualmente, incluindo a família Viperidae, na qual estão classificadas as jararacas e cascavéis. Também há fósseis de jiboias, sucuris e corais-verdadeiras. Um fato curioso é que alguns fósseis foram encontrados em associação à sítios arqueológicos.
As espécies de serpentes extintas brasileiras são importantes para a reconstrução da história evolutiva desse grupo, especialmente aquelas do Cretáceo, como a Tetrapodophis. Do início do Cenozoico em diante, os registros aumentam bastante e contêm informações que ajudam a elucidar questões sobre a distribuição das linhagens ao longo do tempo e como elas se relacionavam com o ambiente em que viviam, como em sistemas como o da proto-Amazônia. Existem algumas lacunas a serem preenchidas e esperamos que novas descrições e estudos evolutivos possam ser realizados para responder a algumas dessas perguntas, lembrando da incrível diversidade que esse grupo alcançou, apesar de ser composto somente por cabeça, tronco e cauda.
Referência
– Onary S.Y., Fachini T.S., Hsiou A.S. The snake fossil record from Brazil. Journal of Herpetology 51(3):365-374.
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