Por Bruno Albert Navarro
Biólogo, mestre em Ciências pelo Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e doutorando do Museu de Zoologia da USP
tuneldotempo@faunanews.com.br
Os maiores animais a caminharem em terra firme foram, sem dúvida, os dinossauros saurópodes do grupo dos titanossauros – e que já apareceram nesta coluna, como em abril e novembro de 2020. Verdadeiros colossos, esses animais eram capazes de fazer o chão tremer, em que algumas espécies encontradas na Argentina, como o Argentinosaurus e o Patagotitan, podiam ultrapassar os 30 metros de comprimento!
No entanto, nem todos os saurópodes apresentavam gigantismo. Foram reportados alguns casos de formas nanóides (popularmente chamados de “anões”), como o Magyarosaurus da Romênia e o Europasaurus da Alemanha, no qual mal atingiam a altura de um cavalo ou de um camelo. Todas as formas de saurópodes anãs conhecidas até então foram encontradas em ambientes que, no passado, eram antigas ilhas. Esse processo de “miniaturização” é bastante comum na natureza, pois, devido à limitação de área e recursos, a diminuição do tamanho do corpo favorece à sobrevivência dos animais.
Mas para nossa surpresa, neste ano foram descritos[1] fósseis de uma espécie de um titanossauro anão do interior do Brasil: Ibirania parva. E é sobre essa nova espécie que iremos detalhar a seguir. Esse novo titanossauro foi descoberto na cidade de Ibirá, no noroeste do estado de São Paulo, tornando-se uma das menores espécies de dinossauros saurópodes conhecidas do mundo até agora.
Do campo ao laboratório: um caminho repleto de descobertas
Em pouco mais de duas décadas, vários grupos de pesquisa – como os da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), do Museu de Paleontologia de Monte Alto (MPMA) e do Museu de Paleontologia Pedro Candolo (MPPC) – têm coletado diversos fósseis no noroeste paulista, em uma localidade bastante prolífica conhecida como Vila Ventura, localizada entre os municípios de Ibirá e Uchoa. As rochas presentes nessa localidade pertencem à formação São José do Rio Preto, uma unidade do Cretáceo Superior da bacia Bauru que possui idade estimada entre os intervalos Santoniano e Campaniano, ou seja, cerca de 83 milhões de anos.
Os fósseis encontrados nessa unidade revelaram a presença de uma fauna diversa e bastante peculiar, incluindo restos de tartarugas (como a da pequena Amabilis uchoensis[2]), alguns crocodilos (possivelmente relatados à Morrinhosuchus[3] e Pepesuchus[4]), como também dentes e ossos de dinossauros carnívoros (como o pequeno abelissaurídeo Thanos simonattoi[5]), alguns dinossauros raptores do grupo dos unenlagíneos[6] e até mesmo restos dos grandes e enigmáticos megarraptores[7]. Diversos dentes e ossos de titanossauros também foram encontrados na região, incluindo osteodermas (depósitos ósseos com forma de escamas ou placas na pele), que indicam a presença de uma forma de grande porte[8].
Analisando uma dessas formas de titanossauros, observamos que seus indivíduos apresentavam várias características únicas, que não eram compartilhadas com seus parentes mais próximos. Assim, chegou-se à conclusão de tratar-se de uma nova espécie. O nome escolhido, Ibirania parva, é a junção das palavras Ibirá – cidade onde a espécie foi encontrada – e ania, que em grego significa ‘caminhante, peregrino’. Já parva é o latim para ‘pequeno’. Como a palavra ibirá é o relativo tupi para ‘árvore’, é possível traduzirmos o nome desse novo dinossauro como “o pequeno peregrino das árvores”.
Desde o princípio era possível notar que os fósseis dos indivíduos de Ibirania parva eram muito pequenos (entre cinco e seis metros de comprimento), mesmo quando comparado a outros titanossauros de pequeno porte da bacia Bauru , o que inicialmente nos levou a crer que pertenciam a indivíduos jovens. Para avaliar se Ibirania tratava-se de um conjunto de animais jovens ou se a espécie era de fato um titanossauro anão, resolvemos realizar análises histológicas de seus membros e vértebras no microscópio e em um tomógrafo (figura 2).
A partir dessas análises foi possível constatar que Ibirania realmente era uma espécie de titanossauro anão, já que seus tecidos mostravam que os fósseis pertenciam a animais adultos quando morreram, ou seja, eles não cresceriam mais ao longo de sua vida (ilustração acima, círculo inferior esquerdo).
Além disso, ao fazer comparações anatômicas e sistemáticas do Ibirania com outros titanossauros encontrados no Brasil e no mundo, foi possível concluir que ele pertencia à família dos saltassaurídeos, um grupo de titanossauros que já inclui algumas espécies de tamanho bastante reduzido. Isso significa que a espécie ter um tamanho menor não é somente devido a causas ambientais, mas porque a espécie fazia parte de uma linhagem de dinossauros que já possuía o corpo reduzido, ou seja, é uma característica herdada evolutivamente.
Também foi possível observar que suas vértebras exibiam a pneumaticidade interna bastante acentuada[9], inclusive preservando resquícios de divertículos e sacos aéreos (ilustração acima, círculo superior), componentes do sistema respiratório que também estão presentes nos dinossauros terópodes e nas aves atuais. Isto é, suas vértebras eram repletas de espaços ocos e, dentro dessas cavidades, existiam partes do sistema respiratório que facilitavam a respiração. Além disso, a análise do tecido ósseo fossilizado de um dos espécimes atribuídos a Ibirania também revelou que aquele indivíduo apresentava um caso de osteomielite aguda[10], que é uma grave infecção óssea, provavelmente decorrente de uma doença parasítica sanguínea (ilustração acima, círculo inferior direito).
Antigos ecossistemas
Há 80 milhões de anos, durante o final do período Cretáceo, o interior paulista era bem diferente, com um ambiente que mais lembraria as savanas africanas dos dias atuais. Contudo, algum fator do ecossistema presente na região de Ibirá favoreceu a existência desses pequenos titanossauros. E, como dito anteriormente, ao contrário de outros saurópodes anões que viviam em antigos arquipélagos, Ibirania vivia numa extensa região continental, distante da influência do mar. Então, quais fatores ambientais poderiam ter contribuído na redução do tamanho dessa espécie?
A resposta pode estar nas rochas de Vila Ventura. Quando analisamos as camadas de rochas presentes na região, notamos a existência de um ambiente semiárido a árido, com uma alternância bem-marcada entre períodos chuvosos breves e violentos, intercalados por episódios de seca intensa.
Esse ambiente com recursos disponibilizados periodicamente pode ter selecionado os pequenos dinossauros herbívoros que, ao invés de migrar, provavelmente permaneciam na região durante as secas, tendo se especializado em um nicho ecológico distinto de outros titanossauros. Uma provável maior tolerância a ambientes desérticos pode ter favorecido animais menores durante os períodos de estiagem prolongados, já que eles necessitam de menos recursos quando comparados a animais de grande porte.
Assim, Ibirania parva é comprovadamente a primeira espécie de titanossauro anão da América, vivendo em um contexto bastante distinto de outros saurópodes anões previamente descritos. Sabemos agora que o isolamento em ilhas não é o único fator responsável na redução de tamanho corporal nesses dinossauros, mas também ambientes altamente estressantes ou nichos ecológicos diferentes podem desencadear o mesmo fenômeno.
Referências
[1] Navarro, B.A.; Ghilardi, A.M.; Aureliano, T.; Díez Díaz, V. Bandeira, K.L.N.; Cattaruzzi, A.G.S.; Iori, F.V.; Martine, A.M.; Carvalho, A.B.; Anelli, L.E.; Fernandes, M.A.; Zaher, H. (2022). A new nanoid titanosaur (Dinosauria: Sauropoda) from the Upper Cretaceous of Brazil. Ameghiniana 59(5): 317–354. https://doi:10.5710/AMGH.25.08.2022.3477.
[2] Hermanson, G.; Iori, F.V.; Evers, S.W.; Langer, M.C.; Ferreira, Gabriel S. (2020). A small podocnemidoid (Pleurodira, Pelomedusoides) from the Late Cretaceous of Brazil, and the innervation and carotid circulation of side‐necked turtles. Papers in Palaeontology (2): 329–347. https://doi:10.1002/spp2.1300.
[3] Montefeltro, F.C.; Laurini, C.R.; Langer, M.C. (2009). Multicusped crocodyliform teeth from the Upper Cretaceous (São José do Rio Preto Formation, Bauru Group) of São Paulo, Brazil. Cretaceous Research (5): 1279–1286. https://doi:10.1016/j.cretres.2009.07.003.
[4] Iori, F.V.; Carvalho, I.S.; Fernandes, M.A.; Ghilardi, A.M. (2011). Peirossaurídeos no Município de Ibirá, Estado de São Paulo (Bacia Bauru, Cretáceo Superior). 22° Congresso Brasileiro de Paleontologia. Atas, pp. 736–738.
[5] Delcourt, R.; Iori, F.V. (2020). A new Abelisauridae (Dinosauria: Theropoda) from São José do Rio Preto Formation, Upper Cretaceous of Brazil and comments on the Bauru Group fauna. Historical Biology 32(7): 917–924. https://doi:10.1080/08912963.2018.1546700.
[6] Ghilardi, A.M.; Fernandes, M.A. (2011). Dentes de Theropoda da Formação Adamantina (Cretáceo Superior, Bacia Bauru) da região do Município de Ibirá, São Paulo, Brasil. In: Calvo, J.O.; Porfiri, J.; González Riga, B.J.; Dos Santos, D. Paleontología y dinosaurios desde América Latina 1st ed. Mendoza: EDIUNC. pp. 115–125. ISBN 978-950-39-0265-3.
[7] Méndez, A.H.; Novas, F.E.; Iori, F.V. (2012). First record of Megaraptora (Theropoda, Neovenatoridae) from Brazil. Comptes Rendus Palevol (4): 251–256. https://doi:10.1016/j.crpv.2011.12.007.
[8] Marinho, T.S.; Iori, F.V. (2011). A large titanosaur (Dinosauria, Sauropoda) osteoderm with possible bite marks from Ibirá, São Paulo State, Brazil. In: Carvalho, I.S.; Srivastava, N.K.; Strochschoen Jr, O.; Lana, C.C. Paleontologia: Cenários de Vida Volume 4. 1st ed. Rio de Janeiro: Interciência. pp. 339–349. ISBN 978-85-7193-274-6.
[9] Aureliano, T.; Ghilardi, A.M.; Navarro, B.A.; Fernandes, M.A.; Ricardi Branco, F.; Wedel, M.J. (2021). Exquisite air sac histological traces in a hyperpneumatized nanoid sauropod dinosaur from South America. Scientific Reports (1): 24207. https://doi:10.1038/s41598-021-03689-8.
[10] Aureliano, T.; Nascimento, C.S.I.; Fernandes, M.A.; Ricardi Branco, F.; Ghilardi, A.M. (2021). Blood parasites and acute osteomyelitis in a non-avian dinosaur (Sauropoda, Titanosauria) from the Upper Cretaceous Adamantina Formation, Bauru Basin, Southeast Brazil. Cretaceous Research: 104672. https://doi:10.1016/j.cretres.2020.104672.
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