Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
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A forma mais comum de soltura de animais silvestres envolve o grupo da avifauna, em especial animais advindos de apreensões de animais traficados, como papagaios e trinca-ferros. Assim, os locais onde ocorrem as solturas desses espécimes se beneficiam também da observação de aves, uma vez que é prática comum a colocação de comedouros para suporte aos animais soltos.
Além disso, é cada vez mais comum a valorização da prática de observação de aves como indutor de turismo. Vários municípios paulistas já possuem calendário fixo com a realização de eventos destinados a promover esse segmento e, até mesmo, a venda de sementes em casas agropecuárias, uma vez que são fornecedoras importantes para quem quer manter um comedouro para aves funcionando a todo vapor. A atividade está até mesmo em planos municipais de turismo pelo grande potencial de movimentar a economia das cidades. Parece mesmo que os gestores públicos “acordaram” para o fato de que floresta em pé é um ótimo negócio. Será mesmo?
O estado de São Paulo ainda possui remanescentes conservados de Mata Atlântica, especialmente em áreas da serra da Mantiqueira e no sul de seu território, no Vale do Ribeira. Ainda há que se destacar que alguns municípios têm vastas áreas em unidades de conservação de proteção integral ou de uso sustentável. No entanto, e apesar de todos os esforços de conservação ambiental, será que estamos mesmo conservando e valorizando o pouco que sobrou de Mata Atlântica?
A resposta parece ser que não!
Para pautar esse raciocínio são dois os argumentos: caça ilegal e exploração imobiliária em franca expansão.
Então vejamos o primeiro problema, o da caça ilegal.
Os caçadores
Como já abordei em colunas anteriores, caçadores são pessoas comuns e que tem uma vida comum. Certamente, qualquer um de nós já esteve com algum deles em fila de supermercado ou no posto de combustível. Ou seja, não há o que os diferencie das demais pessoas. No entanto, o potencial de estrago que uma única pessoa dedicada a essa atividade ilegal pode causar afeta todas as demais e seu efeito negativo pode ser irreversível.
Em função da degradação da Mata Atlântica, altamente fragmentada, algumas espécies são fundamentais para a manutenção dos serviços ambientais que um ecossistema pode prestar. Esse é o caso da anta (Tapirus terrestris). Como sua população vem caindo, são muito poucos os locais no estado onde ainda podemos encontrar animais dessa espécie.
Já parou para pensar que para conseguir ficar adulta e se reproduzir, um animal desse porte tem que vencer o invencível? Tem que escapar de ser caçado, atropelado, atacado por cães domésticos; conseguir se virar com o alimento que encontrar em florestas cada vez mais pobres em biodiversidade de flora, não ficar doente e ainda encontrar um companheiro com o qual dê a “sorte” de cruzar na época do cio? Uma anta adulta pode pesar até 300 quilos e, para se manter viva, tem de ingerir diariamente cerca de 10% do seu peso – 30 quilos de comida. Qual é a qualidade dos nossos remanescentes florestais que permite a existência dessa abundância de alimento disponível?
Ou seja, se as antas conseguem sobreviver é por que passaram por uma verdadeira epopeia. Bastante trágica, como a mais trágica das óperas!
Mas voltemos ao nosso conhecido caçador. É sempre aquele sujeito que diz: “não fui eu, já estava quebrado quando eu cheguei!” Ou seja, “é melhor caçar do que deixar ser atropelado”, “não faz mal caçar de vez em quando” ou ainda “é até bom para a natureza” e por aí vai… Normalmente, formam um clube de “amigos”, caçam durante a noite com colocação de ceva, é claro, já que facilita o abate, pois os animais cada vez encontram menos alimento disponível na mata. Então, ficam ali espreitando, tomando uma cervejinha, bem tranquilos.
Outras vezes, quando o bicho aparece, a armadilha com laço de aço armada garroteia o animal onde pegar, enforcando, fraturando ou até mesmo partindo o bicho ao meio. Pura “diversão”, não é mesmo?
Mas poxa, alguém pode argumentar que é possível fazer uma caça bem mais “legal” que essa, usando, por exemplo, arma de fogo. Ok! Normalmente o animal se assusta e se agita, sendo alta a chance de o tiro acertar em qualquer lugar. Assim a presa foge, com um tiro alojado na anca ou na lateral para morrer muito tempo depois, infestada de bicheira e de gangrena. Ou seja, uma verdadeira beleza!
Mas vamos prosseguir na imagem do nosso frequentador do “clube da caça”. Vamos imaginar que nada daquilo que escrevi acima ocorre e que o animal é rapidamente abatido. No caso de uma anta, que chama muita atenção, é preciso transportar e ter um local seguro, sem intrometidos, para esquartejar e preparar o animal, já que o grande “barato” da caça é comer a iguaria.
Para certas espécies tem até festival, como o macuco, ave quase extinta em vários locais do território brasileiro. E daí, claro, a postagem de todo o processo nas redes sociais sem nenhum pudor ou preocupação, apesar de a caça de fauna silvestre ser proibida por leis federal e estadual. E assim passou-se mais um fim de semana de muita diversão. Inclusive está ficando cada vez mais comum o “turismo de caça”, atividade que vem sendo especialmente e abertamente associada a municípios do Vale do Ribeira, no estado de São Paulo.
Retomando nosso assunto sobre a questão das solturas de avifauna e do turismo de observação de aves. Não se trata de “escolher” entre o turismo de observação e fauna ou “turismo de caça”: se trata de cumprir a lei.
Lá no começo deste artigo, citei que a especulação imobiliária tem um grande peso na degradação ambiental. O pior de tudo é que esse turismo de caça se beneficia também da especulação imobiliária, tanto com a compra de terras “baratas” e florestadas para fazer o tal “rancho de caça” – um lugar para abater os animais e depois fazer o “churrasquinho” de confraternização no fim do domingo – como pelo desmatamento que vai empurrando cada vez mais animais para áreas urbanas. E assim, alguns vão decidindo, por ganância e por convicção, destruir aquilo que não é nosso, mas das gerações futuras de brasileiros, que têm o direito a viver em um meio ambiente equilibrado e saudável.
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