Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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No artigo publicado pelo Fauna News em maio, escrevi sobre a contaminação dos ambientes aquáticos por mercúrio e seus efeitos sobre os mamíferos aquáticos da Amazônia. Certamente o tema é bem mais amplo e envolve questões ambientais, sociais, econômicas e éticas.
O uso do mercúrio e seus efeitos nocivos afetam todos os organismos vivos, tanto no ar quanto na terra e nas águas. A principal causa dessa contaminação se dá quase que exclusivamente para a extração do ouro.
O ouro (Au) é um elemento químico com um dos maiores números atômicos (79) encontrado na natureza. É um metal considerado nobre devido às suas propriedades: é denso, macio, maleável, dúctil, com boa condutividade elétrica e resistente à corrosão, sendo praticamente indestrutível. Apresenta coloração dourada e brilhante, características que o torna extremamente atrativo.
O ouro pode ser encontrado em praticamente toda a crosta terrestre, mas é pouco abundante, ocorrendo sempre em concentrações muito pequenas, em forma de pepitas ou grãos, o que o torna um recurso raro e cobiçado. O valor atribuído a esse metal é de cunho imaginário e motivado pela promessa de poder e valor, o que causou grande impacto em todas as sociedades. Sempre que encontrado, desencadeia uma corrida para sua extração que é desordenada e motivada pela ambição e ganância.
O registro mais antigo de sua utilização pelo homem foi na Mesopotâmia em 4000 a.C. Tem sido usado como moeda de troca desde 3000 a.C. O ouro esteve na origem do aparecimento, desenvolvimento e conquistas das primeiras civilizações conhecidas e vinculado aos maiores eventos da humanidade. Representado como sinal de poder e de riqueza, era utilizado nas transações comerciais, financiamento de guerras e pagamento de resgates.
As grandes expedições do século 16 ao Novo Mundo, como a de Pizarro no Peru e Orellana na Amazônia equatoriana, foram motivadas pela busca de riquezas e de ouro, já utilizado pelos habitantes dessas regiões. O Brasil do século 18 foi marcado pelo advento da mineração do metal.
O estabelecimento da escravidão negra e de sua longa duração no Brasil também esteve fortemente vinculada a esse cobiçado metal e a outros minerais. Em seu livro Escravidão – Volume II, Laurentino Gomes relata que no século 18 o impulso decisivo da escravidão no Brasil foi a descoberta de pedras e minerais preciosos. Nesse período, cerca de 600 mil escravos estavam envolvidos na exploração do ouro e de diamantes de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Mas, até 1693, ano da primeira descoberta oficial do metal, a população negra de Minas Gerais era praticamente zero, subindo para quatro mil em 1720 e saltando para seis mil dez anos depois. Por volta de 1780, Minas Gerais, a capitania mais populosa do Brasil, tinha 174 mil escravos.
Atualmente, os maiores produtores de ouro do mundo são a África do Sul, territórios da ex-URSS, o Canadá, os EUA e a Austrália. Nos últimos dois anos, o Brasil saiu da classificação de 13º para 10º produtor de ouro, com a produção oficial de 106,9 toneladas anuais.
O ouro é um recurso não renovável, mas que pode ser reciclado. Um dos usos mais tradicionais desse metal é a cunhagem de moedas e, principalmente, para reservas bancárias como garantia de equilíbrio nas transações comerciais internacionais. Estima-se que mais da metade de toda a produção mundial de ouro tenha esse destino. Outro uso é a confecção de joias como anéis, pulseiras, relógios, colares, medalhas olímpicas e na forma de ligas e de produtos eletrônicos, como telefones celulares e placas de circuitos em componentes eletrônicos em geral, considerados descartáveis.
Para a extração do ouro, principalmente do tipo de mineração a céu aberto e de lavra, o uso do mercúrio é indispensável. Com a ajuda do mercúrio, os pequenos grãos do valioso metal se agregam formando um amálgama, o que facilita a sua separação e extração de rochas ou da areia. Quando esse amalgama é aquecido, o mercúrio evapora restando apenas o ouro. No final do processo, os vapores produzidos pela queima vão para a atmosfera e os restos contaminados são descartados no solo ou nos rios. Ao ser transformado em compostos orgânicos, o mercúrio entra na cadeia trófica desde as plantas até os peixes, o que acaba incluindo aqueles que utilizam esses animais como alimento, em um processo de biomagnificação.
Segundo dados do Inventário Nacional de Emissões e Liberações de Mercúrio, publicado em 2018 pelo Ministério da Tecnologia, Ciência, Inovações e Comunicações, 70% do mercúrio usado no garimpo é lançado para a atmosfera e 30% para solos, água e rejeitos.
Curiosamente, o Brasil não produz mercúrio (Hg), importando a totalidade de seu consumo. Entre 1972 e 1984, o país mantinha uma média de importação constante de 160 toneladas por ano. Em 1989, esse volume aumentou cerca de 150%, chegando a 340 toneladas. Dados recentes não estão disponíveis facilmente porque a sua importação legal está limitada e restrita; mas em algumas regiões da Amazônia, onde existe intensa atividade de garimpo, o mercúrio é amplamente utilizado e sua origem questionada.
O Observatório do Mercúrio reportou que, em 2019, a cidade de Itaituba, no Pará, sozinha, exportou 186 quilos de ouro. Em 2020, esse número saltou para 1.782 quilos. Entre janeiro e setembro de 2021, já haviam sido exportados 1.747 quilos, reforçando que boa parte desse ouro é oriundo de extração ilegal. Considerando que, em média, os grupos de mineração artesanal no Brasil usariam um grama de mercúrio para produzir um grama de ouro, embora a média global seja de 3:1 de mercúrio para ouro, é possível estimar a quantidade de mercúrio usado nessa atividade somente naquela região.
Outro dado importante relatado por esse grupo é que mesmo em regiões sem mineração, os níveis de mercúrio registrados estão acima do normal, mostrando que as extensas lavras ilegais de ouro existentes nas regiões amazônicas do Peru, da Bolívia e do Equador afetam diretamente regiões do Brasil sem garimpo.
Os maiores produtores de mercúrio do mundo são China, México, Tajiquistão, Peru, Argentina, Noruega e o Quirquistão, que juntos produzem cerca de quatro mil toneladas anuais (dados de 2020). Curiosamente, os maiores exportadores desse metal para o Brasil foram Espanha, Estados Unidos, Reino Unido, Quirquistão e Japão.
O Brasil é signatário da Convenção de Minamata, criada com o objetivo de controlar o uso do mercúrio, visando proteger a saúde humana e o meio ambiente das emissões e liberações antropogênicas desse metal e seus compostos. Essa convenção, ratificada em 2017, estabelece medidas para controlar o fornecimento e o comércio de mercúrio, incluindo o estabelecimento de restrições para fontes específicas do material, como a mineração primária. Também para controlar produtos com mercúrio adicionado e processos de fabricação em que são utilizados mercúrio ou seus compostos, bem como a mineração de ouro artesanal e em pequena escala.
Um grande desafio para a implementação da Convenção de Minamata no Brasil encontra-se no setor de produção de cloro e soda cáustica, usados como insumos em vários processos produtivos e no saneamento. A instalação de novas fábricas com a tecnologia que usa mercúrio está proibida por lei desde 2000. Entretanto, ainda existem no Brasil, quatro fábricas em funcionamento, que deverão ser desativadas até 2025, pelos prazos da convenção. A Abiclor (Associação Brasileira da Indústria de Álcalis, Cloro e Derivados) estima que haja em estoque 200 toneladas de mercúrio nessas quatro fábricas, que continuam importando o metal. Essa informação nos leva a pergunta: qual será o destino dessa quantidade de mercúrio excedente daqui a três anos?
O mapa das áreas de atividades de extração ilegal de ouro e os impactos causados diretamente nas populações indígenas, na atmosfera e, principalmente, nos rios da região são bem conhecidos. A contaminação dos peixes consumidos pelas populações humanas é motivo de preocupação quanto à segurança alimentar e ao aumento de doenças.
Nesse rol incluímos os mamíferos aquáticos da Amazônia, que no caso dos golfinhos fluviais e os mustelídeos aquáticos se alimentam de peixes e o peixe-boi de macrófitas aquáticas e semiaquáticas, que como visto no Fauna News em maio, são plantas que absorvem e armazenam metais pesados e hidrocarbonetos. O impacto sobre esses carismáticos animais, que são, com exceção dos mustelídeos aquáticos, endêmicos da Amazônia e listados como espécies em alguma categoria de ameaça a extinção, é enorme e precisa ser quantificado. Esses animais podem ser utilizados como espécies bandeira para a proteção e a conservação do ambiente aquático e sua fauna nos rios da região.
De posse das informações sobre os impactos nocivos causados pela extração do ouro na Amazônia e para a manutenção da vida das populações humanas e dos mamíferos aquáticos, devemos nos perguntar se é ético e ambientalmente sustentável permitir ou apoiar a continuidade da exploração indiscriminada e criminosa do ouro da forma como vem sendo feita na região. Bem como conhecer sobre o uso do mercúrio nesse processo, considerando que essa atividade destina grande parte de sua produção à confecção de joias. Você também deveria se preocupar ou se questionar sobre a origem do ouro das joias de seu uso.
Literatura consultada não citada no texto
– Branco, J.C., da Silva, M.A.M., e Guimarães, J.R.P. de F. (2006). Relatório Mercado de Mercúrio no Brasil. ACPO – Associação de Combate aos Poluentes: Projeto Mercúrio – Fase I. 35p.
– Observatório do Mercúrio (julho 2021)
– O Eco. Porque o mercúrio é usado na mineração do ouro
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