Por Shirliane de Araújo Sousa, Daniella França e Keila Nunes
Ornitólogas, observadoras de aves e cofundadoras da Ornitomulheres
observacaodeaves@faunanews.com.br
Vivendo em uma sociedade patriarcal com uma cultura de relacionar o gênero feminino apenas ao estereótipo de delicadeza e funções relacionadas ao cuidado, organização e assuntos domésticos, as mulheres sofreram um apagamento histórico no âmbito social, cultural, político e científico. Esse apagamento resultou na falta de protagonismo feminino na Ciência.
Atualmente, passamos por um movimento em que propomos mudanças em todos os aspectos que limitaram, historicamente, a atuação das mulheres enquanto cidadãs, gerando, consequentemente, importantes avanços para o nosso papel na Ciência. Um dos aspectos que limitavam a participação de mulheres em atividades científicas é a ideia de que Ciência e trabalho de campo não são tarefas “femininas”. Essa ideia, além de muito ultrapassada, foi refutada diante da presença significativa das mulheres em diversas áreas de estudo, incluindo a Biologia.
De acordo com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), as mulheres constituem 43,7% dos pesquisadores científicos no Brasil. Em nível mundial, esse valor cai para 30%. Estimativas da ONU apontam que o número de pesquisadoras vai superar o de pesquisadores dentro de uma década. No entanto, o relatório da Unesco (2021) aponta que, apesar dos avanços, mulheres cientistas ainda enfrentam preconceito de gênero, o que resulta em falta de oportunidade e, consequentemente, em baixa representatividade. Quando consideramos mulheres negras, indígenas e de outros recortes sociais, a situação pode ser ainda pior.
Com o objetivo de combater a disparidade de gênero, nos últimos cinco anos surgiram vários coletivos de mulheres com a finalidade de incentivar, valorizar e protagonizar o trabalho exercido por mulheres. Essas iniciativas trazem espaços de debate, acolhimento, desabafo, divulgação de pesquisas e troca de experiências entre mulheres de diversas áreas de formação e atuação. Na Zoologia (área da Biologia que estuda os animais), as redes de mulheres possuem forte atuação e engajamento nas redes sociais, seja focado na atuação como zoóloga (@mulheresnazoologia) ou em diferentes subáreas (por exemplo, @mulheresnaentomologia, @herpetosegundoherpetologas, @mulherespelaprimatologia). Foi com este viés de busca por representatividade que surgiu a Rede de Mulheres na Ornitologia e na Observação de Aves – OrnitoMulheres (@ornitomulheres).
A Rede OrnitoMulheres, assim como outros coletivos/redes de mulheres, busca apoiar, divulgar e incentivar o protagonismo feminino na Ornitologia e na observação de aves. A Rede surgiu por iniciativa de duas mulheres: eu, Dra. Shirliane de Araújo Sousa, mulher preta, mãe, bióloga, ornitóloga e professora da Universidade Estadual do Ceará, e a Dra. Daniella Pereira Fagundes de França, mãe, bióloga, zoóloga, observadora de aves e atualmente gerente de Educação Ambiental do Parque das Aves (PR).
Ainda quando estudante de graduação, eu frequentava os Congressos Brasileiros de Ornitologia e, como mulher preta, não conseguia me sentir representada nesses espaços, pois as poucas mulheres (quando havia) que ali integravam a programação, entre mesas-redondas, palestras e minicursos, eram brancas e heteronormativas. A falta de representatividade sempre foi um dilema enfrentado por mim e por outras mulheres (de acordo com relatos compartilhados na Rede) durante toda a formação acadêmica e, infelizmente, essa ausência persiste, na maioria das vezes, até as nossas vidas profissionais.
A ideia de investigar a representatividade feminina na Ornitologia foi motivada por esse incômodo e inspirada por outras iniciativas de mulheres zoólogas (Mulheres na Zoologia) e ornitólogas (lives em redes sociais e grupo de aplicativos de mensagens – Passariminas), que questionavam a ausência de mulheres em espaços de divulgação científica e nas atividades de observação de aves. Inicialmente, a proposta era fazer um estudo preliminar sobre a temática para ser enviado no formato de resumo ao Congresso Brasileiro de Ornitologia de 2021, que posteriormente seria base para um estudo mais robusto sobre o tema. Procurei a Daniella França e lançamos a ideia para as mulheres integrantes de um grupo de observadoras de aves (Passariminas). A sugestão foi abraçada e num intervalo de dois dias foi criado um grupo de aproximadamente 50 mulheres interessadas em compor a autoria do resumo.
A primeira reunião para organização do resumo foi marcada por um encontro emocionante de mulheres, com muito acolhimento e afeto. Na ocasião, descobrimos que, ao contrário do que os eventos científicos mostravam, existe uma diversidade de mulheres na Ornitologia e em suas diversas áreas. Descobrimos também que os incômodos relacionados à falta de representatividade e de oportunidade enfrentada por nós, mulheres, era uma realidade compartilhada por todas. E foi nesse encontro, realizado em 4 de maio de 2021, que oficializamos a criação da Rede.
O resumo, intitulado “Onde estão as ornitólogas e observadoras de aves do Brasil? Uma análise preliminar sobre a representatividade feminina”, foi assinado por 24 ornitólogas e observadoras de aves e apresentado no XXVII Congresso Brasileiro de Ornitologia. em agosto de 2021, pela pesquisadora Clarissa Santos. Esse estudo representou um marco na Ornitologia brasileira em relação às discussões sobre as pesquisas de gênero e o protagonismo feminino na área.
Mas por que a necessidade de uma rede de mulheres na Ornitologia e na observação de aves?
A Rede OrnitoMulheres é uma forma de auxiliar no combate ao problema sistêmico de viés de gênero na Ornitologia e na observação de aves. Esse coletivo, que acolhe e dá visibilidade para mulheres, surge da necessidade de contribuir para a mudança do cenário atual da Ornitologia e atividades de observação de aves no Brasil. Análises preliminares de dados compilados pela Rede indicam que as ornitólogas e as observadoras de aves provavelmente enfrentam gargalos de oportunidades na carreira e/ou não se sentem confortáveis em ocupar alguns espaços historicamente ocupados por homens. Isso pode ser explicado pelos fenômenos de vazamento de duto, síndrome da impostora e outros fatores.
O questionamento da sua credibilidade e competência, o assédio moral, sexual e psicológico são algumas das principais queixas de mulheres nos seus ambientes de atuação (universidades, laboratórios de pesquisa, expedições de campo, participação em projetos, guiadas de observação de aves) dentro da Ornitologia e de atividades de observação de aves. Ressaltamos a importância de identificar essas mulheres, suas formações e áreas de atuação e quais são os vieses e interseccionalidades que afetam essa falta de representatividade na área. Sem dados concretos e empíricos, medidas efetivas e afirmativas para tornar a Ornitologia uma ciência mais democrática, diversa e inclusiva não podem ser traçadas.
Nesse contexto, os principais objetivos da Rede são divulgar trabalhos liderados por mulheres ou que tenham a participação de mulheres (na Ornitologia ou na observação de aves); apresentar a ornitofauna brasileira com uma linguagem acessível, mas alinhada ao método e conhecimento científico; aproximar à comunidade geral, através da ciência cidadã, produzindo, proporcionando e divulgando o conhecimento científico; e encorajar todas as mulheres a ocuparem seus espaços de direito, fortalecendo e valorizando seus trabalhos e áreas de atuação.
A OrnitoMulheres foi lançada oficialmente para a comunidade em geral em uma live em fevereiro de 2022, quando apresentamos o histórico de criação da Rede, as motivações, os objetivos, o logotipo oficial, nossa forma de atuação e algumas ações já realizadas. A live está disponível no canal do Avistar Brasil no YouTube.
Atualmente, a Rede é composta por mais de 300 mulheres de todas as regiões do Brasil, com formações e áreas de atuação diversas, ligadas direta ou indiretamente a alguma atividade relacionada à Ornitologia e/ou à observação de aves. A Rede apresenta uma diversidade social e cultural bem representativa. Qualquer mulher que se identifique com os objetivos do grupo e esteja interessada ou engajada em alguma atividade ornitológica pode fazer parte desse coletivo, bastando preencher um formulário, entrar no grupo e sentir-se à vontade para somente acompanhar as atividades ou fazer parte de algum grupo de trabalho.
Pensar em desenvolvimento, sem investir em educação, Ciência e tecnologia é algo inimaginável. E pensar em deixar de fora metade da população – as mulheres – é inaceitável. Um ambiente diverso proporciona uma Ciência mais democrática, criativa, robusta, cooperativa e com mais capacidade de perspectivas e resoluções de problemas. Por isso, convidamos todas as pessoas que se identificaram, principalmente as mulheres, para conhecerem, seguirem e acompanharem o nosso trabalho por meio de nossa página oficial (@ornitomulheres).
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O Ornitomulheres é formado pelas Amigas da SAVE Brasil Melissa Alves e Rafaella da Mata, além das autoras Dra. Shirliane de Araújo Sousa, Dra. Daniella França e Dra. Keila Nunes. A rede Amigos da SAVE Brasil conecta pessoas engajadas na conservação das aves na natureza. Você também pode fazer parte contribuindo anualmente com uma doação. Para isso, basta acessar savebrasil.colabore.org.
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