Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
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Quem realiza solturas, acaba tendo uma visão privilegiada sobre a atual situação da fauna silvestre. É possível vivenciar, na prática, a inter-relação entre os diferentes tipos de atores que fazem parte desse cenário, sejam instituições ou pessoas que atuam profissionalmente ou, simplesmente, se envolvem de alguma forma com a questão. Essa é apenas uma outra forma de dizer que para quem trabalha com soltura de fauna silvestre sempre existe o elemento surpresa e o elemento inusitado.
Pelo fato de as cidades continuarem avançando sobre áreas florestadas, a convivência com a fauna torna-se cada vez mais conflituosa e pode assumir contornos bizarros. Não são incomuns casos de pessoas que mantêm animais silvestres confinados em quartos de suas casas, sem que eles jamais tenham contato com o mundo exterior ou com outros de sua espécie. Imaginem um ser vivendo toda a sua existência em um ambiente totalmente artificial, que além de tudo vai ficando cada vez mais degradado e sujo, como se fosse uma área de guerra.
E claro, também, não podemos esquecer a forma cruel como temos tratado o meio ambiente, isto é, com vastas áreas destruídas por desmatamento e a caça e o intenso e antiético comércio de espécies de fauna exótica, que resulta em escapes planejados ou não. Todas essas questões afetam profundamente aquilo que costumamos chamar de meio ambiente e sua fauna silvestre.
Já discutimos nesta coluna sobre se animais mansos podem ser soltos ou não e, sem dúvida, essa não é uma questão simples de ser respondida, sobretudo considerando as diferenças comportamentais entre as espécies da fauna brasileira. Nossa história de hoje começa no telefone celular. Plim! E lá vem duas imagens de um periquitão-maracanã (Psittacara leucophthalmus) em uma mesa de um bar. Na primeira imagem, o animal aparece tomando cerveja da boca de uma garrafa e na segunda ele está bebendo de uma tulipa de chopp. Imagens em close, bem de pertinho!
O primeiro choque foi porque as imagens vieram por um grupo de WhatsApp dedicado a questões técnicas de fauna. Na sequência, os comentários dos pares: “Como assim? Deram cerveja para o bicho? E o povo curtindo isso???” Porque, claro, as tais fotos já tinham sido compartilhadas por várias pessoas e em vários grupos, com inúmeros likes e comentários.
Aí veio o segundo choque, pois o bar era familiar! E para completar, alguém do grupo técnico, sabendo a cidade do “evento de beberagem”, pois o nome tinha sido postado também, sugeriu que o local fosse averiguado. Lá saio eu, domingão à tarde, dia tranquilo e sem chuva, em direção ao local do delito. Sento à mesa, exatamente a mesma do ocorrido, peço uma bebida e fico prestando atenção para ver se algum periquitão aparecia no bar. Mas nada…
Na saída, além da conta, peço para falar com o gerente. Lá vem o rapaz meio desconfiado. Solicito que se sente e começo a explicar a situação. Rola uma certa tensão, que em tempos de pandemia fica evidente após um arrumar de máscara meio nervoso, e assim vem o relato: “É… o pessoal ficou brincando com o bicho, colocando no ombro, dando amendoim…” Aí, mostro as imagens do bicho tomando cerveja e veio a explicação: “É, a gente não sabia bem o que fazer…”
São bem conhecidas as imagens de animais silvestres, em vários lugares do mundo, entrando em resorts, bares e restaurantes atrás de bebida alcoólica. Cenas muito tristes já que, sim, os animais ficam bêbados e sim, sofrem sérios problemas de saúde por causa disso. Sem falar nos problemas comportamentais, pois para algumas espécies, como no caso de primatas, existe até a questão da síndrome da abstinência causada pelo consumo contínuo de álcool, com efeitos perversos sobre a criação de filhotes e coesão social do grupo.
Como reabilitar para que o animal possa evitar situações como essas?
Será que nesse caso, o foco deve continuar exclusivamente no animal ou deve mudar para a educação das pessoas para um convívio mais sadio com a fauna?
Na situação que acabo de relatar, a melhor situação seria resgatar o “beberrão de cerveja”, avaliar, reabilitar e tentar a soltura em outro momento. Chega a ser um mito acreditar que a ação de soltura é única, porque, na prática, não são poucas as vezes em que é necessário recapturar e recomeçar.
Como tenho afirmado, ação de soltura, apesar de planejada, não é ciência exata. Exato mesmo é que no planeta ainda existe fauna silvestre e que essa fauna estava aqui antes de nós. Nosso futuro, como espécie, depende de nossa capacidade de conviver com todas as outras espécies de seres vivos, respeitando, conservando e, com certeza, sem dar álcool a elas.
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