Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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O boto-de-Lahille já apareceu algumas vezes nos artigos da coluna Aquáticos. A primeira vez, quando abordamos a pesca cooperativa, uma interação interespecífica que ocorre entre botos e pescadores artesanais de tarrafa para capturar tainhas no Sul do Brasil. Depois, quando comentamos que, unicidades como essa (sejam culturais, comportamentais ou populacionais), são entendidas como um dos critérios principais para definir estratégias de conservação para os cetáceos (baleias, botos e golfinhos). E, por último, quando alertamos sobre como o risco iminente de construção de uma ponte está ameaçando a sobrevivência de uma população residente dos botos-de-Lahille que cooperam com os pescadores artesanais no estuário do rio Tramandaí, no litoral norte do Rio Grande do Sul.
Mas, você já tinha ouvido falar do “boto-de-Lahille”? Ou, quem sabe, do “boto-da-tainha” ou até mesmo do “golfinho-nariz-de-garrafa”? E por que o boto-de-Lahille está ameaçado de extinção?
O boto-de-Lahille pertence ao grupo dos cetáceos odontocetos (que possuem dentes e apenas um orifício respiratório) e é exclusivamente aquático. Ele está inserido no gênero Tursiops, que inclui golfinhos amplamente distribuídos nos mares e oceanos no mundo. Devido ao formato do rosto, os golfinhos desse gênero são popularmente conhecidos em inglês como bottlenose dolphins, o que é traduzido para golfinhos-nariz-de-garrafa.
O boto-de-Lahille é uma espécie que foi recentemente revalidada e seu nome científico é Tursiops gephyreus. Mas você pode, também, encontrar referências na literatura sobre ele como uma subespécie (Tursiops truncatus gephyreus).
Seu nome popular, boto-de-Lahille (ou Lahille’s bottlenose dolphin) faz referência ao naturalista que descreveu a espécie pela primeira vez, em 1908. Já, boto-da-tainha é uma outra forma popular através da qual eles são conhecidos no Sul do Brasil, devido à interação com a pesca cooperativa.
“Boto” e “golfinho” podem ser entendidos como sinônimos. É como usar, por exemplo, bergamota ou mexerica. Ambas as formas são usadas para se referir aos cetáceos odontocetos. Porém, ao longo do Brasil, é bastante comum usar “boto” para aqueles odontocetos que ocorrem em estuários e baías (como o boto-de-Lahille e o boto-cinza) ou em águas continentais (como o boto-da-Amazônia).
O boto-de-Lahille é endêmico do oceano Atlântico Sul Ocidental, o que quer dizer que ele só ocorre nesse oceano. Ele está presente em águas costeiras (próximas à zona de arrebentação), em baías costeiras e em águas adjacentes de estuários e lagoas costeiras no Sul do Brasil, no Uruguai e em parte da Argentina.
No Brasil, populações residentes do boto-de-Lahille – ou seja, que frequentam um mesmo local ao longo da vida – são bem conhecidas na lagoa dos Patos (RS), no estuário de Laguna (SC) e no canal do estuário do rio Tramandaí (RS). Sabe-se que os indivíduos residentes de cada uma dessas localidades podem se locomover alguns quilômetros de distância por águas costeiras. Mesmo assim, onde se fidelizam, é possível observar relações de parentesco e gerações familiares.
Esse é o caso do que acontece no canal do estuário do rio Tramandaí¹. Nessa localidade, 12 botos são frequentemente avistados e outros quatro aparecem mais esporadicamente. Entre esses botos, pelo menos quatro são comumente registrados há mais de três décadas: o Coquinho, a Geraldona, o Bagrinho e a Catatau. Os últimos três foram filhotes da Manchada, uma das fêmeas que esteve presente durante muitos anos, mas já faleceu.
Estima-se que os botos-de-Lahille possam viver até os 50 anos. O Coquinho é um dos indivíduos mais antigos que frequenta o canal do estuário do rio Tramandaí e tem em torno de 40 anos. Já a Geraldona, ao longo da sua vida, apareceu com mais de oito filhotes nesse estuário, sendo pelo menos dois deles (a Rubinha e o Chiquinho) frequentemente vistos até os dias de hoje.
Ao longo desse período – assim como fazem as outras fêmeas do boto-de-Lahille –, a Geraldona foi registrada inúmeras vezes com seus filhotes, seja descansando, brincando, cuidando e/ou ensinando para eles táticas de como capturar suas presas (inclusive junto com os pescadores artesanais de tarrafa). Foram os pescadores artesanais que, a partir das décadas de convivência com eles (tanto na barra do rio Tramandaí quanto em Laguna), deram para os botos-de-Lahille residentes os nomes pelos quais, hoje, nós também os conhecemos.
Se sabe, portanto, que os botos-de-Lahille vivem em sociedades complexas. As fêmeas têm um período gestacional de cerca de 12 meses e realizam um cuidado parental com seus filhotes até que eles tenham entre quatro e cinco anos de idade. Durante esse período, os filhotes aprendem muito daquilo que é necessário para sobreviver com as fêmeas e, também, com outros membros do seu grupo. Os filhotes nascem principalmente entre os meses de primavera e verão.
Quando adultos, os botos-de-Lahille podem medir até quatro metros de comprimento e pesar mais de 400 quilos. No que se refere à sua alimentação, eles podem ser considerados oportunistas generalistas. Isso quer dizer que, além das tainhas, os botos-de-Lahille se alimentam de acordo com a disponibilidade de presas no ambiente, consumindo principalmente pescados e, por vezes, lulas e crustáceos.
Em 2019, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) classificou o boto-de-Lahille como vulnerável (VU) à ameaça de extinção. A inclusão do boto-de-Lahille na Lista Vermelha da IUCN se justifica pela existência de poucos indivíduos, que têm uma distribuição restrita e muito próxima das regiões costeiras, que sofrem amplamente com as crescentes pressões antrópicas. Em toda sua área de distribuição – que se estende por aproximadamente 3.500 quilômetros – se estima um tamanho populacional de, no máximo, 600 indivíduos (sendo apenas 360 deles maduros). Isso quer dizer que, se eles não forem protegidos, é possível que, em um futuro não muito distante, os botos-de-Lahille (assim como suas interações culturais com os seres humanos) possam deixar de existir.
Evidências indicam que o boto-de-Lahille está diminuindo em partes da sua área de distribuição em razão de capturas incidentais em redes de pesca, além de outros fatores que são ainda desconhecidos. Além disso, a poluição (que se refere à contaminação química e residual, mas, também, à poluição sonora), o esgotamento de suas presas e a degradação e a perda do ambiente em que vivem são ameaças diretas para a sobrevivência do boto-de-Lahille em toda sua faixa de distribuição.
No Rio Grande do Sul, os botos-de-Lahille estão incluídos na Lista das Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção desde 2014. Essa lista é publicada através do Decreto Estadual nº 51.797 que, em teoria, prevê que todas as espécies entendidas como ameaçadas devem ser protegidas. E, mesmo assim, os governos locais (municipais e Estadual) anunciaram com firmeza a construção de uma ponte sobre um dos principais habitat críticos do boto-de-Lahille no país – sem sequer avaliar os impactos da proposta sobre os botos-de-Lahille.
Infelizmente, esse é um exemplo tangível de como a sobrevivência do boto-de-Lahille se torna cada vez mais difícil. Ao redor do mundo – inclusive, no estuário vizinho, em Laguna (SC) -, existem inúmeras evidências científicas de como a construção de pontes ameaçam a sobrevivência de populações de golfinhos. Elas dizem respeito, principalmente, à ampliação do ruído ambiental (que interfere nas suas estratégias de comunicação, de comportamento e de captura de alimentos); à perda e à fragmentação do ambiente onde eles vivem (atuando como uma barreira para a sua movimentação); aos impactos no sucesso reprodutivo das espécies (uma vez que as fêmeas buscarão formas para proteger os filhotes dos impactos); e até sobre competições territoriais ou por recursos alimentares (caso as populações abandonem os locais onde viviam em busca de novos territórios).
Além disso, também em 2019, através da Portaria nº 375, foi aprovado o Plano de Ação Nacional para Conservação de Cetáceos Marinhos Ameaçados de Extinção (PAN Cetáceos Marinhos). O boto-de-Lahille é uma das sete espécies de cetáceos ameaçadas incluídas no PAN e, portanto, deveria ser contemplada com estratégias de gestão e manejo que contribuam para melhorar o seu status de ameaça e, consequentemente, garantir a sua sobrevivência ao longo do tempo.
É preciso insistir que os órgãos ambientais e os representantes políticos (eleitos ou candidatos, afinal estamos em ano de eleição) assumam os deveres e as responsabilidades éticas e legais no que se refere à conservação da biodiversidade. É preciso ampliar o diálogo com a sociedade civil e, principalmente, dar as mãos a todas e todos aqueles que defendem e acreditam na construção de um futuro mais sustentável e socioambiental justo. Vamos juntos/as?
¹Informações sobre os botos-de-Lahille no estuário do rio Tramandaí são compiladas há anos pelo Projeto Botos da Barra em colaboração com os pescadores artesanais de tarrafa.
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