Por Kamila Bandeira
Bióloga com mestrado em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É doutoranda no mesmo programa, além de pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Suas pesquisas estão focadas em Paleontologia de vertebrados
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Entender como a evolução inicial dos dinossauros se deu é sempre uma tarefa árdua. Além da grande dificuldade de achar fósseis completos, nem sempre há a chance de uma boa qualidade de preservação entre eles. Uma exceção é a fauna de dinossauros encontrados na região Sul do Brasil (como já discutido em “Microsphenodon bonapartei: um novo antigo integrante da fauna de Faxinal do Soturno (RS)”, publicado pelo Fauna News em 5 de novembro e 2021).
Inclusive é lá que estão os mais antigos dinossauros do planeta. Entre eles, destacam-se as espécies Pampadromaeus barberenai e Buriolestes schultzi (imagem acima), importantes devido ao posicionamento basal (ou “primitivo”) dentro de um amplo grupo de dinossauros chamado Sauropodomorpha. É dentro do clado Sauropodomorpha que há tanto algumas espécies de pequeno tamanho, com cerca de um metro de comprimento (como o Pampadromaeus), como também os maiores animais terrestres que já pisaram no planeta, como o gigantesco Patagotitan (com mais de 40 metros de comprimento e quase 80 toneladas).
O Pampadromaeus, coletado próximo ao município de Agudo e conhecido por um único indivíduo descrito em 2011 por Cabreira e colaboradores, possui um esqueleto parcialmente completo e encontrado desarticulado. Apesar de não estar totalmente completo, é uma espécie com excelente preservação, inclusive apresentando a maioria dos ossos do crânio. Dois fêmures menores, encontrados em associação com o esqueleto mais completo, foram considerados como pertencentes a indivíduos mais novos (juvenis).
Já o Buriolestes, encontrado no município de São João do Polêsine, consiste em um esqueleto quase completo descrito em 2016 por Cabreira e colaboradores, consistindo em algumas partes do crânio, vértebras, o membro anterior esquerdo quase completo e o membro posterior esquerdo. Mais restos de Buriolestes foram descobertos entre 2015 e 2018. Um desses novos espécimes (CAPPA/UFSM 0035) é um esqueleto quase completo e articulado, apresentando um crânio quase totalmente preservado, incluindo ambas as mandíbulas. Uma característica muito particular do Buriolestes é que, apesar de pertencer a um grupo em que a vasta maioria das espécies é completamente herbívora, todos os indivíduos desse dinossauro apresentavam dentes curvos e afiados, muito similares a animais com hábitos carnívoros ou onívoros.
Outro conjunto de fósseis dessa espécie também é conhecido e foi posteriormente identificado como de indivíduos mais jovens. Na pesquisa de Müller e colaboradores de 2018, através da tomografia computadorizada, foi mostrado que o Buriolestes exibia um trato olfatório alongado, diferindo do trato curto observado em muitos outros sauropodomorfos que apareceriam milhões de anos mais tarde. A tomografia computadorizada também mostra um flóculo bem desenvolvido do cerebelo, sendo que essa estrutura desempenha um papel fundamental na coordenação dos movimentos oculares. Interessantemente, essa estrutura é especialmente desenvolvida em espécies com dieta onívora ou carnívora, pois são animais que dependem de movimentos rápidos da cabeça e do corpo. Essa pesquisa ajudou a corroborar, juntamente com as características dentárias citadas, que ao menos esse dinossauro poderia atuar como um predador em alguns momentos, sugerindo que os primeiros membros do Sauropodomorpha tinham uma dieta mais variada do que se pensava.
E agora, em 2022, foi publicado na revista científica Paleontological Research, um artigo sobre a variação de algumas estruturas anatômicas em membros posteriores, tanto do Pampadromaeus quanto do Buriolestes. Mais precisamente, o estudo deu ênfase aos ossos da coxa (chamado de fêmur). Essas estruturas, como cristas, cicatrizes e elevações ósseas presentes no fêmur, estão intimamente relacionadas com a fixação, o grau de desenvolvimento dos músculos dos membros posteriores e podem ser mais ou menos desenvolvidas ao longo do crescimento e maturidade desses dinossauros – processo chamado de “série ontogenética”. Graças a ter mais de um indivíduo preservado de cada uma das espécies analisadas, o novo estudo pode averiguar como uma cicatriz muscular (chamada de cicatriz anterolateral) se comporta ao longo do desenvolvimento ontogenético desses animais. A cicatriz anterolateral ocorre especificamente na cabeça do fêmur e é uma estrutura encontrada exclusivamente em dinossauros e alguns outros parentes muito próximos, sendo muito importante para entender como essa característica não apenas surgiu como ela também se fixou como algo único entre os dinossauros.
Interessantemente, a cicatriz anterolateral só aparece durante uma fase mais madura da maturidade desses dois dinossauros em questão. Os espécimes menores, que foram considerados os mais jovens de cada espécie, não apresentam nenhum sinal da cicatriz anterolateral. Já nos espécimes maiores (que foram considerados como adultos), essa estrutura é bem desenvolvida, além de mudar o seu formato conforme a idade avança. Na pesquisa, foi confirmada a suspeita da cicatriz anterolateral ser afetada durante as distintas fases ontogenéticas e, consequentemente, isso pode ter uma série de implicações nos estudos sistemáticos (aqueles preocupados em entender como a evolução funciona). Por fim, essa pesquisa reforça que os primeiros dinossauros adquiriram uma das mais diversas adaptações em seus esqueletos e que muitas destas estruturas mudam durante as diferentes fases ontogenéticas.
Para saber mais
– Cabreira, S. F.; Schultz, C.L.; Bittencourt, J.S.; Soares, M.B.; Fortier, D.C.; Silva, L.R.; and Langer, M.C. 2011. New stem-sauropodomorph (Dinosauria, Saurischia) from the Triassic of Brazil. Naturwissenschaften, 98: 1035–1040.
– Langer, M.C; McPhee, B.W; Marsola, J.C.A; Silva, L.R.; and Cabreira, S. F. 2019. Anatomy of the dinosaur Pampadromaeus barberenai (Saurischia—Sauropodomorpha) from the Late Triassic Santa Maria Formation of southern Brazil. PLoS ONE, 14: 1–64.
– Müller, R.T.; Langer, M.C.; Bronzati, M.; Pacheco, C. P.; Cabreira, S. F; and Dias-Da-Silva, S. 2018. Early evolution of sauropodomorphs: anatomy and phylogenetic relationships of a remarkably well-preserved dinosaur from the Upper Triassic of southern Brazil. Zoological Journal of the Linnean Society, 184 (4): 1187–1248. doi:10.1093/zoolinnean/zly009. S2CID 90215853.
– Müller, R.T.; Ferreira, J. D.; Pretto, F. A.; Bronzati, M.; and Kerber, L. 2020. The endocranial anatomy of Buriolestes schultzi (Dinosauria: Saurischia) and the early evolution of brain tissues in sauropodomorph dinosaurs. Journal of Anatomy, 238 (5): 1-19.
– Müller, R.T.; Garcia, M. S.; e Dias-Da-Silva, S. 2020. Evidências da origem e ascensão dos dinossauros sauropodomorfos preservadas em leitos fossilíferos do Triássico do Sul do Brasil. Terrae Didatica, Campinas, 16: e020013.
– Müller, R.T. 2022. On the presence and shape of anterolateral scars in the ontogenetic series of femora for two early Sauropodomorph dinosaurs from the Upper Triassic of Brazil. Paleontological Research, 26(1): 1-7. https://doi.org/10.2517/PR200001.
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