Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Os golfinhos de rio são as espécies de cetáceos mais ameaçadas devido aos crescentes impactos gerados globalmente pelos projetos de desenvolvimento promovidos pelo homem e pelo uso desordenado dos rios e das bacias hidrográficas.
No mundo existem poucas espécies de golfinhos exclusivamente fluviais. Uma delas é o golfinho do Yangtze ou rio Amarelo, na China, conhecido como baiji (Lipotes vexillifer). Foi a primeira espécie de cetáceo considerada extinta em consequência de ações do homem, em 2006. Estima-se que por volta do século 3 a.C,, quando esse golfinho foi descrito no antigo dicionário Erya, havia cerca de cinco mil baijis ao longo de 1.700 quilômetros do curso médio e inferior do Yangtze.
Dois outros golfinhos fluviais ocorrem no subcontinente indiano, nas bacias dos rios Ganges-Brahmaputra, na Índia. O susu (Platanis gangetica) e o bhulan (Platanista minor), na bacia do rio Indus no Paquistão, áreas que abrigam a maior população humana na Terra.
Essas duas espécies de golfinhos foram separadas durante o Pleistoceno, cerca de 550 mil anos atrás. Atualmente, estão seriamente ameaçadas devido a múltiplas ações antropogênicas, tais como poluição, alteração do curso dos rios e fragmentação de habitat, captura acidental e direta e projetos de grandes infraestruturas como barragens e usinas hidrelétricas.
O único grupo de golfinho de rio ainda abundante e amplamente distribuído é o do boto-vermelho nos rios da bacia Amazônica, com três espécies: Inia araguaiaensis ou boto-do-Araguaia, descrito em 2014 e restrito a bacia dos rios Tocantins-Araguaia; Inia boliviensis, o boto-da-Bolívia, com distribuição nos rios Mamoré-Guaporé, na Bolívia, e no rio Madeira, desde acima da cidade de Borba, no Amazonas, até a Bolívia; e Inia geoffrensis, o boto ou boto-vermelho (Fig. 4), distribuído ao longo dos rios da Amazônia central e em conexões com outros países amazônicos como a Colômbia, o Equador, o Peru e a Venezuela.
Sem exceção, mas em diferentes escalas, todos esses golfinhos estão sujeitos a ameaças frequentes e persistentes. Ameaças que variam desde o barramento de rios para irrigação e produção de energia (usinas hidrelétricas) até a redução da disponibilidade de peixes, base da alimentação desses mamíferos aquáticos, seja pela sobrepesca, pela poluição ou alteração dos ambientes aquáticos seja pelo tráfego de embarcações.
Sofrem ainda com a poluição química, por ações de mineração com intenso assoreamento dos rios e suas margens e pelo uso de metais pesados, como o mercúrio na exploração do ouro. Entre diversos outros poluentes que contaminam a cadeia alimentar e destroem seus habitat, afetando diretamente esses predadores de topo de cadeia e seu alimento, esses golfinhos ainda precisam superar a captura acidental nas redes de pesca e a captura direta para o uso de sua carne como isca ou outros tipos de atrativos.
O boto-vermelho é o maior dos golfinhos de rio. Foi classificado como espécie Ameaçada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) em 2018 não só pela rápida redução do tamanho populacional, especialmente em consequência da captura direcionada para servir de isca na pesca do bagre piracatinga (Callophysus macropterus), mas também pelas demais ameaças que afetam diretamente os golfinhos de rio.
No Brasil, os botos, junto com outros animais silvestres, estão protegidos por leis federais. Em 1967, a promulgação da Lei nº 5.197, conhecida como Lei de Proteção à Fauna, e a vigência de demais instrumentos normativos atrelados a ela, coibiu a exploração da fauna silvestre. Uma legislação especifica, a Lei nº 7.643 de 18 de dezembro de 1987, proíbe a pesca de cetáceos em águas jurisdicionais brasileiras. O Decreto Federal nº 6.514 de 2008, nos artigos 28, 29 e 30, deixa claro a proibição da caça, da comercialização de produtos, da perseguição, dos maus-tratos e de ações que molestem de forma intencional qualquer espécie de cetáceo no Brasil. Apesar de ampla legislação protegendo os golfinhos, nem assim o boto deixou de ser capturado intencionalmente e usado como isca.
Os registros desta atividade ilegal na Amazônia brasileira datam do final da década de 1990. Até o ano de 2014, nenhuma ação efetiva havia sido tomada visando parar esta prática que se espalhou por diversos rios da região. Em janeiro de 2015, foi decretada a moratória da piracatinga por um período de cinco anos. O bloqueio da pesca e da comercialização deste bagre pescado com a carcaça de boto foi a única medida estabelecida que impedia de alguma forma a continuidade do uso de botos como isca. Em 2020, essa moratória foi estendida por mais um ano e, em julho de 2021, novamente prorrogada até julho de 2022, já que até então as condicionantes estabelecidas pela moratória não haviam sido cumpridas.
A moratória e suas renovações não agradaram aos grupos de pescadores nem aos donos de frigoríficos e patrões da pesca que pescavam e comercializavam esse bagre. Por conseguinte, a pressão para encerrar com a moratória é bastante forte.
Em 2017, o governo da Colômbia (principal país importador desse pescado) proibiu a pesca e o comércio da piracatinga em seu território alegando questões de saúde pública, devido ao seu alto teor de mercúrio. Com a moratória estabelecida e o bloqueio comercial daquela nação, a comercialização desse pescado, desde 2015, é totalmente ilegal. Como consequência, em 2019, o Conselho Nacional da Pesca e Aquicultura do Amazonas (Conepa-AM) criou um grupo de trabalho (GT) multidisciplinar para avaliar a situação da piracatinga, das espécies-isca e do uso do boto e de jacarés nessa pescaria. O GT- Conepa-AM, depois de várias reuniões, elaborou um plano de ação visando responder às condicionantes da moratória.
Entretanto, a grande questão permanece: quem financiará as ações estabelecidas nas moratórias e nos planos de ação? Em 2020, a Secretaria de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SAP/Mapa) assumiu a responsabilidade da coordenação de outro grupo de trabalho, tomando como base o plano de ação gerado pelo GT-Conepa-AM e visando a retomada da pesca da piracatinga no Brasil em julho de 2022.
Novas reuniões foram realizadas e metas estabelecidas, a grande maioria voltada para as questões da pesca, da comercialização da piracatinga e do ordenamento e monitoramento dessas atividades, sem que fossem estabelecidas garantias claras e medidas de controle para o não uso do boto e de jacarés como isca.
Estamos fechando 2021. O próximo ano, 2022, é ano de eleições com prazos estipulados por lei para liberação de recursos. Os políticos locais querem o apoio dos pescadores e de empresários da pesca para as suas reeleições. Tanto em nível estadual quanto federal não têm sido liberado recursos voltados à conservação de espécies tampouco foram destinadas verbas ou lançados editais para o financiamento das ações estabelecidas na moratória e nos planos de ação.
É importante ressaltar que a prorrogação da moratória finalizará em seis meses. Teremos tempo para executar as ações que irão garantir a proteção das espécies-iscas? Qual a segurança de que botos não continuarão a ser usados como isca com a liberação da pesca da piracatinga? Qual o futuro do boto da Amazônia?
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