Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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O primeiro exemplar de tucuxi (Sotalia fluviatilis) bem como o exemplar-tipo (animal que serviu de base para a descrição de uma espécie) do boto-vermelho (Inia geoffrensis) foi coletado por Alexandre Rodrigues Ferreira em 1790. Considerado o Humboldt brasileiro, Rodrigues Ferreira nasceu na Bahia em 1756 e estudou em Coimbra, Portugal. Domingos Vandelli, que havia sido seu professor, o indicou para chefiar uma das expedições filosóficas nas colônias portuguesas do Novo Mundo, no final do século 18.
Rodrigues Ferreira iniciou sua expedição em 1783. Ao longo de 10 anos, percorreu as capitanias do Grão-Pará, São José do Rio Negro (Amazonas) e Mato Grosso (Cuiabá). Em 1793, voltou para Portugal. Inicialmente, assumiu o posto de oficial da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, dedicando-se à administração metropolitana. Posteriormente, foi nomeado vice-diretor do Real Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico e da administração das Reais Quintas da Bemposta, Caxias e Queluz. Nunca pode se dedicar à análise e aos estudos dos espécimes e do material por ele coletados.
As expedições filosóficas foram as primeiras tentativas financiadas pela coroa portuguesa para estabelecer um estudo organizado e sistemático da história natural de suas colônias em diversas regiões do Novo Mundo. As expedições percorreram e mapearam as grandezas do império luso. No final do século 18, diversos países já haviam enviado naturalistas para diferentes lugares no mundo para coletar plantas, animais, minerais, fósseis, em busca de conhecimento e controle dos processos naturais.
Apesar de a Academia de Ciências de Lisboa determinar normas para a coleta e descrição do material coletado, a viagem comandada por Rodrigues Ferreira não se prendeu a esses princípios, dedicando-se mais às questões econômicas e utilitaristas. No entanto, ele aproveitou a ocasião para reunir vasto e rico material, que foi enviado para Portugal, e parte dele acabou depositado no Museu da Ajuda, em Lisboa.
Essa Viagem Filosófica cientificamente constitui um dos primeiros levantamentos completos da natureza na Amazônia e do seu povoamento, com ênfase nos aspectos históricos e econômicos. Antecede as viagens de Spix e Martius, mas lamentavelmente eventos políticos na época impediram o devido reconhecimento da sua obra, já que no seu retorno a Portugal não teve o apoio do governo português para trabalhar o material coletado e publicar os resultados da sua viagem. Rodrigues Ferreira foi ignorado pelos grandes centros científicos da Europa e morreu frustrado e deprimido em abril de 1815.
Apesar de as Viagens Filosóficas serem projeto de interesse português e financiadas pela coroa, os cortes financeiros eram frequentes, dificultando o pagamento da equipe, a compra de equipamentos e materiais, assim como a execução das diversas etapas da expedição. Depois de convidado para comandar essa grande aventura e ter embarcado para Portugal logo após o convite, ficou esperando em Lisboa cinco anos para o início de sua expedição, que finalmente saiu de Portugal em 1783.
Rodrigues Ferreira chegou ao Pará em outubro, iniciando seus trabalhos pela ilha de Marajó. Em 1784, partiu para o rio Negro, que percorreu até a fronteira e, em seguida, retornou para Barcelos, capital da capitania de São José do Rio Negro. No final de agosto de 1788, subiu o rio Madeira, o Mamoré e o Guaporé. Chegou a Vila Bela, capital de Mato Grosso, em 1789. Prosseguiu para a vila de Cuiabá em 27 de junho, descendo pelos rios Cuiabá, São Lourenço e Paraguai, voltando para Belém em janeiro de 1792 para regressar a Portugal.
Ao chegar em Belém, foi informado pelo capitão Luiz Pereira da Cunha, responsável por fazer as remessas para Lisboa dos produtos por Rodrigues Ferreira coletados ao longo dos 10 anos de expedição, que havia gastado todo o dote da filha pagando as custas das remessas de caixas de material. Ele, então, prontamente respondeu: “isso não servirá de embaraço a seu casamento; eu serei quem receba essa sua filha”. E assim, acabou se casando em setembro de 1792, pagando dessa forma sua dívida de honra.
Vários objetos, animais e plantas coletados por Rodrigues Ferreira ficaram encaixotados e foram espalhados por diversas instituições portuguesas. O exemplar do boto-vermelho, o piraia-guará, coletado em 1790, permaneceu no Museu da Ajuda.
Em 1808, as tropas de Napoleão Bonaparte, chefiadas pelo general Junot, invadiram Portugal e a família real portuguesa fugiu para o Brasil deixando para trás um país desprotegido e entregue a sua sorte.
Em 1810, E. Geoffroy Saint-Hilaire, sob ordens de Napoleão, levou para o Museu de História Natural de Paris, como espólio de guerra, grande parte do material depositado nos museus portugueses, principalmente do Museu da Ajuda, entre eles o exemplar do boto coletado por Rodrigues Ferreira.
Somente em 1817, dois anos após a morte de Rodrigues Ferreira, o exemplar por ele coletado foi descrito pelo zoólogo francês H. de Blainville, como Delphinus geoffrensis, em homenagem ao naturalista E. Geoffroy Saint-Hilaire. Ainda hoje é possível visitar esse exemplar do boto empalhado e o esqueleto no Museu de História Natural no Jardin de Plantes, em Paris. O local exato onde esse exemplar tipo foi coletado não é conhecido. Foi registrado como sendo originário da América do Sul, provavelmente do Alto Amazonas, no Brasil.
Uma das grandes frustrações e desgosto de Rodrigues Ferreira foi não só constatar a dispersão do material por ele coletado em diferentes instituições e museus de Portugal, mas, principalmente, a perda e a troca de etiquetas do material.
O boto sempre foi cercado de lendas e superstições, o que pode explicar a dificuldade de alguns naturalistas em obterem exemplares desse animal para as suas coleções. Em 1832, Alcides D’Orbigny, naturalista francês, durante sua expedição à Bolívia obteve com grande dificuldade um espécime de boto no rio Guaporé (ou Itenez), próximo ao Forte Príncipe da Beira, que ele denominou de Inia boliviensis (D’Orbigny, 1834).
Outro naturalista, o inglês Henry Bates, que viveu na Amazônia entre 1848 e 1859, enviou para o Museu de História Natural de Londres um exemplar de boto e um de tucuxi e relatou que “nenhum animal do Amazonas é sujeito a tantas lendas quanto o boto….”, e que só depois de muitos anos, ele pode induzir um pescador a arpoar um golfinho para ele, “porque ninguém arpoa esses animais voluntariamente”. Entre diversos outros viajantes e naturalistas, o austríaco Augusto Natterer obteve, em 1829, um exemplar que foi arpoado no rio Guaporé e uma fêmea prenhe em Borba (rio Madeira) em 1830, ambos levados para o Museu de Viena (Áustria). Somente a partir de 1900, exemplares das espécies de golfinhos do Amazonas começam a despertar o interesse de zoólogos e pesquisadores no Brasil e a aparecer em museus brasileiros.
Hoje, em pleno século 21, mesmo protegido por leis, para nossa indignação e revolta o boto é capturado para servir de isca na pesca da piracatinga, um bagre necrófago abundante nos rios de água branca da bacia Amazônica.
Referência
Costa, M de F. (2001). Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania de Mato Grosso: imagens do interior. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Vol. VIII (Suplemento), 993-1014.
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