Por Ana Carolina Pontes Maciel
Bióloga, especialista em Gerenciamento Ambiental e mestra em Sustentabilidade na Gestão Ambiental. É militar da Força Aérea Brasileira na Guarnição da Aeronáutica de Canoas (RS), trabalhando com logística sustentável, meio ambiente e segurança de voo. Integra a REET Brasil
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Animais domésticos podem causar prejuízos à operação aérea
Há um samba-choro composto por Alberto Ribeiro e lançado em 1937 chamado Cachorro Vira-Lata, do qual tirei a inspiração para o título deste artigo. Os primeiros versos são “Eu gosto muito de cachorro vagabundo/ Que anda sozinho no mundo/ Sem coleira e sem patrão/ Gosto de cachorro de sarjeta/ Que quando escuta a corneta/ Sai atrás do batalhão”. Interpretada por Carmen Miranda, a letra mostra que a existência de cães não domiciliados em quartéis não é um fenômeno atual. Por conseguinte, podemos extrapolar essa presença aos aeródromos militares e civis.
No artigo “Espécies-problema da fauna em aeroportos“, abordamos os principais animais silvestres presentes nos aeródromos brasileiros e qual a sua relação com o ambiente aeroportuário. A atualização do Ranking Brasileiro de Severidade Relativa de Espécies de Fauna, apresentada no Aerofauna 2021 pelo biólogo Weber Novaes, trouxe algumas novidades acerca do tema em relação à publicação anterior – dessa vez, quem ganhou destaque foi o cachorro-doméstico.
Apenas no ano de 2020, foram reportados 135 eventos com a espécie no Brasil (incluindo colisões, quase colisões e avistamentos), em 44 diferentes aeroportos (CENIPA, 2021). O estudo, contudo, contemplou reportes de 2011 a 2020, levando os cães ao segundo lugar da lista, com 96% de severidade relativa – perdendo apenas para o urubu-de-cabeça-preta.
A entrada de animais terrestres em área operacional, ainda que não culmine em colisão ou atropelamento, pode ocasionar sérios efeitos no voo, como arremetidas, decolagens abortadas e filas de espera devido ao fechamento das pistas, resultando sempre em prejuízos, tanto às companhias aéreas quanto aos operadores de aeródromos. Uma rápida pesquisa em portais de notícias nos mostra que esses eventos já ocorreram nos aeroportos mais movimentados do país.
A despeito da intensidade da movimentação, pode-se afirmar que todos os aeroportos do Brasil apresentam conflitos com a presença de cães não domiciliados em seus limites. A circulação deles é problemática tanto para a segurança operacional, dada a severidade de uma colisão, como também envolve os riscos de proliferação de zoonoses, de ataques à comunidade aeroportuária e aos passageiros e a presença de dejetos em áreas de circulação.
Tais conflitos, em geral, são protagonizados por cães não domiciliados, cujos problemas são agravados quando consideramos que há uma superpopulação desses animais nas áreas urbanizadas. A população de animais domésticos abandonados ou em situação de vulnerabilidade no Brasil pode ser de mais de 30 milhões, valor estimado pela Organização Mundial de Saúde (JUNQUEIRA & GALERA, 2019). Como mitigar esse risco?
A instalação de cerca operacional nos aeródromos é única garantia de que não haja entrada de animais terrestres na área de movimento das aeronaves. Mesmo instalada, a estrutura deve ser monitorada periodicamente pelo operador do aeródromo e ter uma programação de manutenção. O objetivo é evitar buracos, furto da malha, avarias na fixação dos baldrames e quaisquer outros acometimentos que possibilitem o acesso indesejado de fauna terrestre.
Entretanto, para além dos grandes centros urbanos e aeroportos com grande número de movimentos, é sabido que há aeródromos sem cerca operacional, o que representa uma grande fragilidade. Os operadores, nesses casos, devem não apenas pleitear sua instalação como também lançar mão de uma série de alternativas enquanto isso não acontece. Dentre elas, destacam-se:
Campanhas junto à comunidade – Ações de educação ambiental com os bairros do entorno, abordando temas como tutela responsável, coibição do abandono e promoção do bem-estar animal; e
Parcerias – Atuações junto ao poder público municipal, instituições privadas e/ou organizações não governamentais para a promoção de eventos de castração, vacinação e manejo populacional (como, por exemplo, ações de captura, esterilização e devolução). Essas ações são indispensáveis para a redução das ninhadas indesejadas e, consequentemente, do abandono, do sofrimento e do número de indivíduos não domiciliados.
Dada a relevância dos agentes externos para a execução dessas ações, a Comissão de Gerenciamento de Risco de Fauna (CGRF, coordenada pelo operador do aeródromo) é uma indispensável ferramenta de discussão, contato, planejamento, compartilhamento de responsabilidades e implementação das campanhas.
Quando tratamos de assuntos relacionados à causa animal, especialmente em situações conflituosas, como essa, é necessário ter em mente que a responsabilidade é de todos. Culpabilizar exclusivamente um personagem dessa equação, imputando-lhe integralmente o dever das ações preventivas e corretivas é uma postura ineficaz, que em nada contribui para a mitigação do risco.
Ademais, as medidas planejadas devem levar em conta as premissas de bem-estar animal, as prescrições normativas (Lei de Crimes Ambientais, resoluções dos Conselhos de Classe dos profissionais da área e legislação municipal de proteção animal, quando houver). Embora ainda haja lacunas nesse universo, felizmente já dispomos de arcabouço legal suficiente para que os cães não tenham o mesmo final trágico de um dos personagens da canção, “o vira-lata, coitado/ que não foi matriculado/ desta vez virou sabão”.
Aeroportos, comunidade e poder público devem abraçar sua parcela de responsabilidade e possibilidade de ação, estabelecendo parcerias de forma colaborativa. A abordagem deve ser sempre proativa, priorizando a sensibilização quanto ao problema, jamais sua transferência.
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