Bióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde é mestranda junto ao Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias (NERF)
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Um dos impactos menos óbvios das rodovias para a fauna talvez seja a poluição luminosa. Afinal, para nós, uma rodovia bem iluminada parece uma maravilha, segura, bonita. Mas e para a fauna? O quão segura é essa rodovia?
Uma comparação interessante, e que pode nos dar um panorama da possível gravidade desse impacto, é entre as fontes luminosas antrópicas e a fonte de luz noturna natural: a Lua. Para isso, podemos usar a iluminância (medida em lux) dessas diferentes fontes. A iluminância, quantidade de luz visível em uma superfície, é resultado da divisão entre a quantidade de luz emitida por uma fonte (lúmens) pela área (m2). A quantidade de luz visível que chega à superfície da Terra à noite pode variar muito de acordo com o ciclo lunar ou com as condições climáticas. Uma noite de lua cheia e de céu aberto tem entre 0,1 e 0,3 lux, enquanto noites nubladas podem ter entre 0,00003 e 0,0001 lux.
Luzes direcionadas para o chão, como as de postes de luz, tendem a ter uma iluminância entre 10 e 20 lux quando medida exatamente abaixo da fonte. Na medida em que nos distanciamos (~20 metros) esse valor já cai para menos de um lux. Em contrapartida, os faróis de carros atingem distâncias muito maiores, pois são direcionados horizontalmente, e podem chegar há mais de 100 metros com valores acima de 1 lux. Comparando essas iluminâncias com a da noite mais iluminada possível ( aproximadamente 0,3 lux), já podemos imaginar um pouco melhor a extensão desse impacto.
Sabe-se que a luz – tanto natural, quanto artificial – pode influenciar diretamente no comportamento das espécies. Falamos um pouco de como isso acontece em relação à luz da Lua e aos atropelamentos no artigo “Atropelamentos de animais e a luz do luar”, de 11 de junho de 2020. A utilização de luz artificial, portanto, além de interferir no comportamento e distribuição das espécies, pode gerar consequências fisiológicas e até na sobrevivência de indivíduos. A extensão dessas interferências vai depender do comprimento de onda, da intensidade, da direção da luz e da sensibilidade do organismo receptor a esses fatores. Dessa forma, uma percepção humana é inadequada para entender o impacto da luz no ambiente.
As luzes de maior espectro, brancas, são especialmente problemáticas, pois podem ser gatilho para muitos processos biológicos. Já a luz azul desperta grande preocupação por influenciar nos níveis de melatonina (hormônio do sono) e no ritmo circadiano (ciclo biológico de um organismo durante um dia) de muitas espécies. Faróis de carros mais modernos (como os de xênon e LED) emitem mais luz azul, bem como muitas luzes de casa ou da iluminação pública. Embora possamos pensar que os faróis de veículos gerem um impacto menor do que as luzes de postes, por não serem constantes, essa pode ser uma falsa impressão oriunda da percepção humana, visto que, estudos em laboratório evidenciaram que a luz pulsante também pode ter efeitos severos nos animais. Além disso, ela também causa o comportamento de evitamento, até mais do que a luz contínua, podendo gerar efeito de barreira, impactando negativamente o movimento das espécies.
A melhor maneira de lidar com a poluição luminosa seria não iluminar áreas. Já existem algumas iniciativas para preservar áreas totalmente sem iluminação para a fauna, como a Associação Internacional Dark-Sky (céu-escuro). Em locais onde isso não é possível, como em regiões urbanizadas ou rodovias, existem algumas medidas que podem minimizar esse impacto. Por exemplo, nas rodovias é recomendável intercalar áreas sem iluminação em áreas iluminadas por postes, para que espécies que evitam a luz consigam utilizar o local como corredor. Além disso, os postes devem ter escudos direcionadores, para que a luz não se dissipe para locais indesejados.
Existem outras alternativas para a impossibilidade de não instalar luzes. Elas podem, por exemplo, ser programadas para desligar em determinadas horas da noite ou podem ser instaladas barreiras de vegetação ou artificiais que ajudem a produzir áreas sombreadas e livres de luz. Em locais sensíveis, lâmpadas com menor amplitude de espectro, como as amarelas ou verdes, devem ser priorizadas.
Sempre que for viajar durante a noite e olhar os postes de iluminação ou os faróis dos carros, lembre-se: para nós a iluminação artificial auxilia no deslocamento, mas para a fauna ela pode ser paralisante.
Referências
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