Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
aquaticos@faunanews.com.br
Em 2021, embarcamos numa série de “desafios para a conservação dos cetáceos” que vêm abordando, pouco a pouco, os complexos e entrelaçados desafios que envolvem a conservação de baleias, botos e golfinhos no ecossistema marinho. Foi nesse contexto que, no último artigo, introduzi as áreas marinhas protegidas a partir de um cenário mais geral, pretendendo, desta vez, adentrar mais afundo no cenário brasileiro.
Entretanto, há poucas semanas, o streaming Netflix lançou o documentário Seaspiracy, que – além de estar entre as produções mais assistidas no mundo no momento – aborda diversas questões sobre as quais venho comentando no Aquáticos e que expõe algumas das complexidades que envolvem a conservação dos cetáceos.
Por essas razões, vamos aproveitar a onda do Seaspiracy, dialogá-lo com essa temática e explorar algumas controvérsias do filme. Já adianto que – inevitavelmente – haverá alguns spoilers, mas direcionarei este artigo àquilo do documentário que se refere principalmente aos cetáceos (e há outras diversas questões abordadas).
Vale a pena assistir Seaspiracy? Diria que sim, uma vez que o documentário expõe questões absolutamente relevantes. Contudo, é preciso assisti-lo com atenção e criticidade. Diversos(as) especialistas – principalmente biólogos(as) e ecologistas marinhos(as) e pesqueiro(as) – têm se manifestado, destacando que – ainda que aborde questões importantes – o documentário: apresenta imprecisões científicas nos dados (o que poderia ter sido remediado se pesquisadores(as) tivessem sido convidados(as) a participar); exibe de forma superficial questões socioambientais que são bastante complexas; tem uma postura desonesta e pouco ética com dados científicos e organizações não governamentais (ONGs) de conservação que atuam há décadas pela conservação marinha; e, ainda, traça caminhos enganosos e exagerados, estimulando uma atmosfera de conspiração pouco capaz de atuar na raiz dos grandes problemas citados.
Além das referências nos links, indico, para quem interessar possa, especialmente: os vídeos produzidos no YouTube pela pesquisadora Marine Cusa (que são repletos de referências relevantes), a thread no Twitter do pesquisador Bryce Stewart e uma reportagem do jornal The Telegraph que verifica algumas das afirmações centrais mais controversas do documentário.
O Seaspiracy parte do fascínio do personagem principal – o diretor e cineasta britânico Ali Tabrizi – por baleias e golfinhos desde a sua infância e por sua curiosidade pelos oceanos. Isso o motiva a abordar as principais ameaças antrópicas à sobrevivência desses organismos e do ecossistema marinho por caminhos que o levam à indústria pesqueira.
Essa indústria – da pesca comercial de escala industrial – é apresentada como a principal responsável pela escassez dos oceanos, pela ampla perda de biodiversidade e pela poluição marinha por resíduos plásticos (com ênfase na pesca fantasma). Além disso, o documentário expõe os conflitos sociais existentes na indústria pesqueira, revelando abusos de direitos humanos e cruéis condições laborais nesse setor (com destaque para a escravidão moderna na indústria pesqueira da Tailândia); e como o avanço da pesca industrial sobre alguns territórios vulnerabiliza, ainda mais, a segurança alimentar de comunidades tradicionalmente vinculadas ao mar.
Contestando a sustentabilidade da indústria pesqueira, o Seaspiracy questiona alguns selos internacionais de certificação (como o Dolphin Safe e o Marine Stewardship Council) e defende o não consumo de pescados (ou outros organismos marinhos) como a única solução para salvar os oceanos. O documentário foi produzido por Kip Anderson, diretor de outros documentários que incentivam dietas a base de plantas (como Cowspiracy e What the Health).
No que diz respeito aos cetáceos, o documentário ressalta sua importância para manutenção dos ecossistemas marinhos e para lutar contra às mudanças climáticas (como já comentei). Destacando a importância de protegê-los, ao longo da narrativa são apresentados vários impactos – lembrando, da pesca comercial de escala industrial – que ameaçam sua sobrevivência.
Dentre eles estão: I) a recente saída do Japão da Comissão Baleeira Internacional e o retorno à caça comercial de baleias pelo país; II) a captura intencional de golfinhos na baía de Taiji (Japão) para vendê-los para indústria de entretenimento de parques e aquários; III) a mortalidade de cetáceos por resíduos plásticos (seja por ingestão e por emaranhamento em redes e outros utensílios de pesca); e IV) os altos níveis de mortalidade de cetáceos por captura acidental (bycatch) em operações de pesca industrial, questionando a certificação Dolphin Safe.
A partir daqui, vamos esmiuçar, um a um, esses pontos. Antes disso, porém, ressalto algo que considero bastante problemático. Durante todo documentário – seja referente aos problemas acima citados para os cetáceos, seja para os que são apresentados para tubarões e tartarugas marinhas – Tabrizi repete constantemente: “isso era algo ninguém sabia”, “ninguém queria falar sobre este problema”, “por que isso não virou manchete?”.
Isto não apenas é equivocado, como é, ainda, absolutamente injusto. Por todo mundo e há anos, pesquisadores(as), instituições e ONGs pesquisam, questionam, estudam, discutem e buscam soluções para esses problemas. Há décadas – desde quando a pesca comercial ampliou drasticamente sua escala de extração à níveis industriais e, consequentemente, os impactos sobre o ecossistema marinho – se fala sobre isso. Portanto, no crucial momento de perda de biodiversidade em que estamos, não é coerente querer promover preservação enquanto se instigar um público majoritariamente leigo contra cientistas, instituições e ONGs que apoiam a conservação. Dito isso, vamos lá.
Iniciaremos pelos primeiros cinco minutos, onde já se evidencia porque é preciso estar atento à forma como os dados são apresentados nessa produção. Enquanto se discorre sobre a mortalidade de cetáceos pela ingestão de resíduos plásticos, utiliza-se como plano de fundo uma filmagem aérea de um encalhe em massa na beira da praia.
A ingestão de resíduos plásticos é, sem dúvida, um problema que leva a morte de inúmeros indivíduos de cetáceos por ano, devido ao bloqueio do trato digestivo, do comprometimento da capacidade de absorção de nutrientes e até da desnutrição.
Além deles, os microplásticos, sobre os quais se têm cada vez mais informação, apresentam riscos aos cetáceos não apenas por comprometer o sistema digestivo. Eles podem, também, absorver e conter altos níveis de toxinas e poluentes orgânicos persistentes, que são introduzidos nos organismos por meio da ingestão e que, a longo prazo, pelo processo de bioacumulação, poderiam, inclusive, afetar processos biológicos como o crescimento e a reprodução das espécies de cetáceos.
A mortalidade em massa (ocasionando um encalhe em massa), por sua vez, é relativamente comum entre os cetáceos. Uma variedade de fatores – frequentemente sinérgicos – é atribuída a esses eventos, tais como a poluição sonora, a desorientação magnética, doenças infecciosas, contaminação por biotoxinas de algas, ações antrópicas (como derramamentos de óleo) ou ambientais (como tsunamis). Não há nenhuma evidência científica, no entanto, de que a ingestão por plásticos possa provocar um evento de mortalidade em massa.
Já no que diz respeito à mortalidade de cetáceos ocasionada por plásticos derivados da indústria pesqueira, isso se dá pelo emaranhamento de indivíduos em redes e outros artefatos de pesca à deriva nos oceanos. Estima-se que esse impacto – também conhecido como pesca fantasma – seja responsável pela morte de 136 mil mamíferos marinhos todos os anos.
O Seaspiracy contribui amplamente para a divulgação deste impacto ao evidenciar sua gigantesca e preocupante dimensão. Contudo, falha em alegar que não encontrou “nada sobre o que fazer com equipamentos de pesca” e que “aliás, eles sequer foram citados” por organizações que trabalham com resíduos plásticos no ecossistema marinho.
Qualquer pessoa que se disponha a fazer uma pesquisa rápida encontrará uma série de iniciativas (como Global Ghost Gear Initiative, Ghost Diving Global Mission ou Ghost Network) e de programas que buscam mitigar, reduzir e conscientizar sobre esse problema (como Marine Debris Program – National Oceanic and Atmospheric Administration -NOAA) e até mesmo desenvolver novas tecnologias (como Food and Agriculture Organization of the United Nations – FAO).
A captura acidental de cetáceos em operações de pesca industrial (conhecida como bycatch) é incidental e os cetáceos capturados são principalmente descartados. Para outros organismos que apresentam valor comercial (como tubarões), a captura pode ser, de fato, intencional (como é indicado no documentário) e esta captura nas operações de pesca pode ser, então, denominada como “captura acessória” (captura de espécies que não são alvo de uma pescaria, mas podem ser aproveitadas e comercializadas).
Ainda que provavelmente subestimada, calcula-se que a captura acidental de mamíferos marinhos alcance mais de 300 mil indivíduos mortos por ano em operações de pesca em todo o mundo. A captura acidental é um dos impactos antrópicos mais importantes na mortalidade de muitos mamíferos marinhos e pode representar uma ameaça crítica para algumas espécies de cetáceos (como, por exemplo, a vaquita Phocoena sinus sobre, a qual já comentamos).
Por esta mesma razão, há diversas legislações e acordos internacionais que visam protegê-los da mortalidade excessiva – os quais são o resultado de anos de pesquisas, lutas ambientais e análises de casos de estudo.
A primeira interação de pesca acidental a ser reconhecida como uma preocupação séria de conservação foi a captura em larga escala de golfinhos pelágicos (especialmente das espécies Stenella attenuata, Stenella longirostris e Delphinus delphis) durante operações de pesca de atum com redes de cerco no oceano Pacífico Tropical Oriental (EUA) (sobre a qual comentei). Estima-se que essa captura acidental tenha levado, desde o seu início na década de 1950, a morte de mais de seis milhões de golfinhos.
Como resultado da pressão pública, foram aprovados alguns dos primeiros compromissos legais com conservação dos cetáceos do mundo. Buscou-se reduzir a captura acidental por meio de moratórias para a regulamentação da indústria de atum, inclusão de observadores de bordo para fiscalizar as frotas pesqueiras, forçar modificações nos equipamentos de pesca e trabalhos na capacitação de capitães e tripulações que ajudaram a desenvolver técnicas para diminuir o bycatch.
Foi para regulamentar essa interação que se criou a certificação “atum seguro” (Dolphin-safe Tuna) duramente criticada no Seaspiracy. Ela deveria garantir que o atum vendido fosse capturado a partir de práticas mais “seguras para golfinhos”. Formalizada na década de 1990, ela obrigou a indústria do atuam se adaptar, enquanto consumidores(as) responderam positivamente à nova certificação e as vendas de produtos sem certificado decaíram no mercado.
A mortalidade anual dos golfinhos foi reduzida para menos de 800 indivíduos até 2015, representando uma captura incidental anual inferior a 0,1% do tamanho estimado de cada população. Mesmo assim, essa ainda é a maior captura incidental de cetáceos documentada no mundo (o que não é ignorado por cientistas nem por ambientalistas ou por instituições como o documentário sugere).
Se há evidencias que ela não tem sido eficaz? Ora, evidentemente é fundamental que se pressione por crescentes e constantes melhoras nas estratégias de mitigação e conservação, principalmente quando consideramos que as populações dessas espécies ainda não se recuperaram completamente. Entretanto, desacreditar pesquisas e instituições que há décadas buscam soluções não resolve o problema – principalmente, quando o documentário não se propõe a expor nenhuma solução alternativa.
O International Marine Mammal Project (IMMP) – responsável por administrar a certificação Dolphin-safe – trabalha há 40 anos para a conservação de mamíferos marinhos e se posicionou sobre o Seaspiracy. O IMMP argumentou que as empresas obtêm o rótulo sem custo, desde que suas práticas pesqueiras estejam em conformidade com os regulamentos federais e que não haja captura, ferimento ou morte de golfinhos. Endossou ainda que – cumprindo os regulamentos federais e outras medidas de proteção adicionais – as empresas têm acesso a um logotipo licenciado do IMMP, sobre o qual a taxa de licenciamento é direcionada exclusivamente ao custeio do monitoramento das instalações pesqueiras para garantir a conformidade dos padrões de proteção.
O documentário – corretamente – destaca que rótulos de sustentabilidade podem, sim, ser enganosos e imperfeitos, mas, ao mesmo tempo, encobriu que há anos esse e outros rótulos do tipo vêm sendo discutidos. Ao invés disso, outro argumento negligenciado e que poderia ter contribuído mais para essa discussão, diz respeito à extremamente difícil, perigosa e custosa tarefa de fiscalizar medidas de conservação em alto mar (que tem sido abordada em nossa série) – o que dificulta amplamente a eficácia das medidas de proteção para esses organismos.
Outra desinformação induzida pelo Seaspiracy diz respeito à retomada da pesca comercial de baleias pelo Japão. É fato que o país saiu da International Whaling Comission – IWC (sobre a qual já explicamos), assim como é fato que o país retomou suas operações de caça comercial com o abatimento de 227 indivíduos em 2019 (52 baleias-minke Balaenoptera acutorostrata, 150 baleias-de-Bryde Balaenoptera brydei e 25 baleias-fin Balaenoptera physalus). Contudo, sua frota retomou formalmente as operações dentro da zona econômica exclusiva do país e não em direção ao oceano Antártico como induz o documentário em seus primeiros minutos.
Ao sair da IWC – o que pode ser considerado por muitos um ponto positivo – o Japão abriu mão do direito legal de capturar baleias no oceano Antártico (abdicando de uma “propriedade comum” do oceano). Durante 30 anos, enquanto membro da IWC, o país se aproveitou da cláusula que permitia a pesca “para fins científicos” e abateu centenas de baleias-verdadeiras em águas internacionais.
Também em território japonês, é exibida caça de golfinhos em Taiji, onde os animais são atraídos para dentro de baía, cercados e capturados para comercialização. Eles são comprados pela indústria de entretenimento de parques marinhos e aquários ao longo do mundo. Sem dúvida essa caça é apoiada e financiada pela indústria que os mantêm em cativeiro, assim como há indícios de que os indivíduos não comercializados sejam abatidos por uma mentalidade de “controle de pragas” (como um bode expiatório para a sobrepesca que ocorre na região).
No entanto, diferentemente do afirmado pelo documentário, há sim um mercado de consumo de carne de golfinho, ainda que ilegal. Tanto a venda para a indústria do entretenimento quanto o consumo humano dessa carne (que contêm altíssimos níveis de mercúrio), já foi previamente e melhor abordado pelo documentário norte-americano The Cove (2009).
Diversos especialistas argumentam que – ao simplificar demais a Ciência e escolher abordar o assunto com ingenuidade – a produção prestou um desserviço à preservação do oceano e que – justamente por abordar questões tão relevantes – deveria ter assumido a responsabilidade ética de apresentar uma narrativa baseada em fatos.
Por exemplo, um ponto central para compreender os impactos da pesca no ecossistema marinho e enfrentar suas problemáticas de forma prática – pouco aprofundado no documentário – é exatamente sua industrialização e as suas enormes escalas de extração.
Repetidas vezes reitera-se que não existem pescas sustentáveis (o que não é verdade, veja, por exemplo, o caso da pesca cooperativa entre pescadores artesanais de tarrafa e botos). Além disso, a insatisfatória conclusão é que a única solução para a conservação dos oceanos está no não consumo de pescados.
Isso, além de demonstrar com qual agenda o documentário está de fato comprometido (a dieta a base de plantas) é utópico (sou uma vegetariana há mais de 10 anos) e irresponsável, principalmente quando consideramos o papel que os pescados têm na soberania e na segurança alimentar e nutricional de inúmeras comunidades tradicionalmente vinculadas ao mar.
Ao final, Seaspiracy opta por assumir um discurso superficial de que escolhas de consumo individuais estão levando ao uso insustentável dos recursos hidrobiológicos quando, na verdade, o maior problema está na insistência em um sistema econômico suportado pela desigualdade social e que prevê a acumulação de bens através da extração máxima da natureza por processos desenvolvimentistas.
Citando Ailton Krenak – como já quase de costume – “atitudes individuais ajudam muito pouco se não alteramos também as estruturas”. Portanto – além de soluções alternativas muito mais simples que poderiam ter sido estimuladas, como o consumo de pescados locais obtidos a partir da pesca artesanal, comprados diretamente junto aos pescadores artesanais, ou o não consumo de pescados e outros organismos marinhos sem saber sua origem e a partir de qual arte de pesca foi capturado, evitando também produtos congelados ou enlatados –, há outras soluções que deverão partir da desconstrução de alguns paradigmas da conservação instaurados até hoje e principalmente de outras formas de organização social e de como relacionar-se com a natureza.
– Leia outros artigos da coluna AQUÁTICOS
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es).