Por Vanessa Vidal
Bióloga, mestra em Zoologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). Integrante do Grupo de Estudos de Artrópodes da Amazônia – GEAA (Instagram e Facebook)
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A pergunta inicial que você deve estar se fazendo, caro leitor, é: o que são caranguejos-ferradura? Apesar do nome, esses animais estão mais relacionados às aranhas do que aos caranguejos. Por muito tempo, acreditou-se que esses artrópodes, classificados como pertencentes ao sub-filo Chelicerata (aqueles que possuem quelíceras), eram parentes dos aracnídeos. Mas com os avanços em técnicas genômicas e estudos na área, como o artigo de Ballesteros e Sharma, publicado em 2019, esses invertebrados de aparência singular passaram a ser considerados da classe Arachnida, ou seja, são ARACNÍDEOS AQUÁTICOS!
Os caranguejos-ferradura, também chamados de xifosuros ou límulos, pertencem a ordem Xiphosura e são considerados verdadeiros “fósseis vivos”: com cerca de 450 milhões de anos são mais antigos que os dinossauros. Apesar de atualmente serem encontradas quatro espécies, fósseis indicam que já ocorreram em grande diversidade.
Eles são encontrados nos oceanos da América do Norte e da Ásia, onde ficam no substrato, nadando e se enterrando a procura de detritos, moluscos e outros invertebrados. Apresentam uma grande carapaça e um télson (“cauda”) pontiagudo, mas não se deixe enganar, pois essa estrutura não é um ferrão com veneno. Na verdade, esse télson tem como funcionalidade a locomoção e foi a partir dessa estrutura que se chegou ao nome do grupo: xiphos é a palavra grega para “espada” e uros é a palavra grega para “cauda”. Na época de acasalamento, eles são abundantes nas praias.
Mas qual a relação desses animais com a vacina? Outra característica peculiar dos caranguejos-ferradura é o seu sangue azul. Isso ocorre graças à presença da proteína hemocianina, que possui cobre na composição. Além disso, o sangue dos caranguejos-ferraduras também apresenta um agente químico que retém bactérias por meio de coagulação, sendo assim importante para a detecção da presença desses microrganismos, mesmo que em quantidades baixas. Dessa forma, o sangue é usado para testar a contaminação durante a fabricação de diferentes produtos, desde vacinas até implantes, e é muito utilizado nos testes e fabricação das vacinas contra o vírus da Covid-19, contribuindo para salvar milhões de vidas humanas.
Infelizmente, a exploração humana sobre os xifosuros pode trazer alguns malefícios para as quatro espécies que ocorrem no mundo. Após ocorrer a perfuração da carapaça, parte do sangue é recolhido e depois os xifosuros são devolvidos para a natureza. Porém, nesse processo muitos acabam morrendo e os demais apresentam dificuldades para a sobrevivência e reprodução, o que causa problemas na perpetuação dos caranguejos-ferradura. Essa utilização na indústria farmacêutica, somado ao uso excessivo desses animais como iscas para pesca e à poluição, já demostra um declínio em muitas populações. Isso também provoca desequilíbrios na cadeia alimentar, pois muitas espécies de pássaros migratórios se alimentam destes artrópodes e de seus ovos. Uma outra curiosidade é que esses seres são utilizados para a alimentação humana em países asiáticos.
O lado bom, é que já existe alternativa para a utilização do sangue azul dos xifosuras: o composto sintético “fator C recombinante” (rFC), que em 2016 foi aprovado na Europa e várias empresas no EUA começaram a utilizá-lo. Entretanto, em 2020, a agência Food and Drug Admisnistration (FDA), que estabelece os padrões a serem seguidos no EUA, alegou que a segurança e a qualidade desse produto ainda não foram devidamente comprovadas.
Em contrapartida, Tinker-Kulberg e colaboradores, também em 2020, apresentaram um estudo com uma possível solução: o método de aquicultura (produção em cativeiro de organismos aquáticos) que permite extrair o sangue da espécie Lumulus polyphemus sem necessidade de coletar os animais do mar. Segundo o artigo, essa técnica mostra zero mortalidade, além de os caranguejos-ferradura permanecerem saudáveis e de o sangue retirado ter melhor qualidade. Porém, por ser uma tecnologia nova e que demanda um custo adicional, ainda não é muito utilizada. Dessa forma, infelizmente, seguimos com a utilização cada vez maior do sangue e causando a morte desses animais.
Será que os benefícios decorrentes da exploração dos xifosuros são maiores que os custos para a sobrevivência da espécie?
Referências
– Arnold, C. O Sangue de caranguejo-ferradura é essencial para uma vacina Covid-19 – Mas o Ecossistema Pode Sofrer. National Geographic, 2020. Disponível em: https://www.natgeo.pt/animais/2020/07/o-sangue-de-caranguejo-ferradura-e-essencial-para-uma-vacina-covid. Acesso em: 01 de Abril de 2021.
– Ballesteros, J.A.; Sharma, P.P. A Critical Appraisal of the Placement of Xiphosura (Chelicerata) with Account of Known Sources of Phylogenetic Error. Systematic Biology, 68(6), p. 896–917, 2019. doi: https://doi.org/10.1093/sysbio/syz011
– Brusca, R.C.; Brusca, G.J. Invertebrados. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007.
– Como caranguejos de sangue azul podem ajudar no desenvolvimento da vacina contra covid-19 – e morrer por isso. BBC News Brasil, 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-53370940 . Acesso em: 01 de Abril de 2021.
– Confirmado: Xifosuros são aracnídeos, e com 10 pernas e carapaça. Saber atualizado, 2019. Disponível em: https://www.saberatualizadonews.com/2019/03/confirmado-xifosuros-sao-aracnideos-e.html. Acesso em: 1º de Abril de 2021.
– Cramer, D. Inside the Biomedical Revolution to Save Horseshoe Crabs and the Shorebirds That Need Them. Audubon, 2018. Disponível em: https://www.audubon.org/magazine/summer-2018/inside-biomedical-revolution-save-horseshoe-crabs. Acesso em: 02 de Abril de 2021.
– O sangue azul de caranguejo que salva milhões de vidas todos os anos. BBC News Brasil, 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-51825719. Acesso em: 1º de Abril de 2021.
– Ruppert, E.; Barnes, R.D. Zoologia dos Invertebrados. 6ª ed. São Paulo: Roca Ed., 1996.
– Tiker-Kulberg, R.; et al. Horseshoe Crab Aquaculture as a Sustainable Endotoxin Testing Source. Frontiers in Marine Sciense, 7(153), p. 1-13, 2020. doi: https://doi.org/10.3389/fmars.2020.00153
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