Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Em continuidade aos artigos publicados no Fauna News sobre os mamíferos aquáticos da Amazônia, apresento este artigo sobre outro mamífero dos rios Amazônicos, o peixe-boi, adaptado do capítulo escrito por mim e os coautores Glenn Shepard e Nívia A.S. do Carmo, em 2017, com o título “Os mamíferos aquáticos: lendas, usos e interações com as populações humanas na Amazônia brasileira”. Como informado anteriormente (Fauna News Fev 21), este capítulo foi escrito para o livro Olhares cruzados sobre as relações entre seres humanos e animais silvestres na Amazônia (Brasil, Guiana Francesa), editado pelos pesquisadores Guillaume Marchand e Felipe Vander Velden e publicado pela Editora Universidade Federal do Amazonas.
No mundo existem três espécies de peixes-bois: o peixe-boi-marinho (Trichechus manatus), que pode ser encontrado tanto em rios quanto em estuários e no litoral Atlântico, desde a costa nordeste do Brasil até a península da Florida nos EUA; o peixe-boi-africano (Trichechus senegalensis), distribuído nas lagoas costeiras, rios e litoral oeste do continente africano (entre o Senegal e o norte de Angola); e o peixe-boi-da-Amazônia (Trichechus inunguis), endêmico dos rios da bacia Amazônica e totalmente restrito a água-doce.
Esses magníficos animais pertencem a um grupo taxonômico totalmente distinto dos golfinhos – ordem Sirenia e família Trichechidae. O nome “inunguis”, que significa “sem unhas”, difere o peixe-boi-da-Amazônia dos outros peixes-bois que possuem unhas na ponta das nadadeiras.
O peixe-boi-da-Amazônia é o menor de todos, atingindo no máximo 275 centímetros de comprimento e a pesar 420 quilos. É o maior herbívoro aquático dos rios amazônicos. Além da cor preta, tem como característica uma ou mais manchas mais claras, brancas ou rosadas, na região ventral do corpo, que são usadas pelos pesquisadores que trabalham com essa espécie para identificação individual, da mesma forma como fazemos com as impressões digitais.
Diferente também dos golfinhos de rio (boto-vermelho e o tucuxi), o peixe-boi, desde antes da chegada dos europeus ao Brasil, era caçado pelos nativos pela sua carne, gordura e pelo espesso e resistente couro usado como escudo e armadura contra as flechas inimigas. Gaspar de Carvajal, durante a expedição de Francisco de Orellana no rio Amazonas, em 1542, relata que:
“(…) os índios eram numerosos e muito bem armados, com armas muito estranhas e nunca vista antes por algum cristão, eram cobertos da cabeça aos pés com pequenos escudos feitos de couro de peixes-bois, e estes eram de tal forma que uma flecha (crossbow) não poderia perfurá-los (…)” (MEDINA, 1988). Pag. 421-422.
O nome da ordem, Sirenia, tem sua origem nas lendas das sereias. Elas eram criaturas da mitologia grega que, com seu canto maravilhoso, encantavam e atraiam os marinheiros com suas embarcações para rochedos traiçoeiros.
Na mais célebre dessas narrativas, sereias tentaram em vão atrair com seu canto Ulisses (Odisseu), o herói grego da Antiguidade e a tripulação do seu navio para se arrebentarem nas rochas.
Durante centenas de anos, marinheiros e exploradores acreditavam que os peixes-bois e seus primos, os dugongos, eram as sereias das lendas. Cristovam Colombo, em 1493, registrou em seu diário de bordo que “as ditas sereias não eram assim tão bonitas como ele havia sido levado a acreditar”. Provavelmente, da mesma forma como aconteceu com as lendas do boto, as historias trazidas pelos colonizadores europeus de mouras, sereias e outras criaturas extraordinárias, incorporaram a elas os animais e mitos que encontraram no Novo Mundo, sendo o peixe-boi mais um deles.
Curiosamente, os peixes-bois e outros sirênios não emitem sons altos. As vocalizações do peixe-boi-da-Amazônia são rápidas e curtas, dificilmente audíveis, com a média variando para machos de 3,2 kHz e fêmeas de 4,8 kHz. Esses animais têm uma audição bem desenvolvida para sons de alta frequência, com sensibilidade a sons entre 200 Hz e 35 kHz e pico de 3kHz. Os seres humanos escutam sons de frequência mais grave entre 12 Hz e os de frequência mais aguda 20 kHz .
Na Amazônia, existem várias histórias e lendas sobre o peixe-boi. O historiador Orico (1937) conta que durante sua infância ia ao bosque Rodrigues Alves, em Belém (PA), e ouvia que na Amazônia existe um lago, o “lago do peixe-boi” onde o caboclo, ao passar por ali, tem de levar qualquer lembrança para jogar na água e oferecer ao peixe-boi. “Se não o faz, este vira a canoa ou prega uma peça qualquer ao viajante deslembrado”.
Outro grande historiador, Nunes-Pereira (1967), em seu MoronGuêtá – Um Decameron Indígena, relata várias lendas dos índios tucuna e uitoto do Vale do rio Solimões, no Amazonas, incluindo a seguinte lenda do peixe-boi:
“Um dia, os Tucunas fizeram uma festa de Moça-Nova e pelação de Curumi. Mas o Pajé mandou a Moça-Nova e o Curumi tomar banho na beira do rio. Quando a Moça mergulhou o Pajé jogou atrás dela um talo de canarana. E quando ela boiou já era peixe-boi. E assim que o Curumi mergulhou, jogaram também, atrás dele, talo de canarana. Quando ele boiou, perto da Moça, já era peixe-boi. Todos os peixes-bois nasceram desse casal. E é por isso que eles comem canarana”.
Ruiz (2011) relata que na mitologia híbrida dos índios cocama do Peru, o peixe-boi era originalmente a esposa do “nosso Deus”, Jesus Cristo. Mas ao voltar para casa depois de uma longa viagem, descobriu que ela o havia traído com seu empregado. Quando foi tomar banho no rio, como punição ela foi transformada em peixe-boi e suas roupas em boto para que não ficasse sozinha. Relata ainda que os pescadores cocama, quando matam um peixe-boi, procuram algum dente mole na sua boca, que extraído é guardado como amuleto para ter boa sorte na pesca. Alternativamente, procuram pequenas pedras no intestino do animal, que têm a mesma função. Esse autor conta ainda que os índios shipibo do Ucayali costumam usar um grande recipiente na forma de um peixe-boi para servir a bebida fermentada de cashiri para garantir fartura nas suas festas.
No ritual ihinika dos paumari do rio Purus, Bonilla (2005) conta que o peixe-boi representa um “patrão” branco e gordo, navegando o rio na sua embarcação na companhia de seus vários serventes e empregados, entre eles o tucuxi, considerado o “timoneiro” do peixe-boi. O ritual, entre outros elementos da cosmologia paumari, enfatiza as relações patrão/empregado que foram tão estruturantes na interação desses índios com o sistema de aviamento e exploração comercial durante o século XX.
Na Colômbia, lendas sobre o peixe-boi foram compiladas de relatos dos nativos da região de Porto Nariño por S. Kendal e colaboradores, em 2004. Em uma delas, uma jovem que desobedece aos pais no dia do seu casamento envelhece prematuramente e é levada ao rio, onde então se transforma em peixe-boi. Em uma outra, conta a transformação de vermes (gusanos), que vivem em pequenas bolsas penduradas em árvores nas margens dos rios, em peixes-boi quando caem na água.
Uma relação comum feita pelos povos miranha do Cuiú-Cuiú com o peixe-boi é acreditar que em várias ocasiões ele se transforma em uma pessoa negra. Para eles, o boto representa um homem branco no fundo do rio, enquanto o peixe-boi é associado ao homem negro.
Em seu estudo na Amazônia brasileira, Calvimontes (2009) relata que muitas populações ribeirinhas veem o peixe-boi como um peixe e que produz vários filhotes simultaneamente. No entanto, sabemos que, apesar de ter peixe no seu nome, é um mamífero e que gera apenas um filhote por gestação.
Comparado com outras espécies de mamíferos aquáticos, o número de lendas sobre o peixe-boi não é muito grande. Como esse animal sempre foi usado como recurso alimentar historicamente importante para as populações tradicionais e ribeirinhas ao longo da sua área de distribuição, é possível que não tenham guardado lendas e superstições que interferissem negativamente no uso e na exploração desse magnífico animal. Existem no entanto, e em abundância, relatos de encontros, de luta nas capturas, da astúcia dos caçadores e sobre as diferentes artes e estratégias utilizadas na sua captura, exaltando o caçador mais que a sua presa e com informações sobre o comportamento arredio desse dócil mamífero.
Apesar do reduzido número de lendas, as populações tradicionais e ribeirinhas desenvolveram vários usos e superstições com o peixe-boi. Mesmo sendo um animal robusto, muito forte e possuir uma cauda possante para impulsionar o corpo e se defender, é inofensivo e não ataca. Para se proteger, utiliza-se de uma audição bastante sensível que lhe permite detectar ruídos mínimos e se evadir rapidamente para escapar de seus potenciais predadores. Sua estrutura auditiva é composta por ossos grandes e densos muito evidentes no crânio estreito e relativamente curto.
Por isso, a crença no poder curativo para a surdez do pó do osso do ouvido ingerido em alguma bebida ou chá, ou no uso como pingentes de outros ossos do ouvido amarrados em volta do pescoço como tratamento para esse mal. A banha pura ou misturada com óleo de andiroba é usada no tratamento de doenças respiratórias, inchaços, para alívio das dores musculares e de diversas doenças dos ossos, como, por exemplo, reumatismo e hérnias. A pele tostada e moída é dissolvida em chás para combater doenças respiratórias e impotência.
Os ossos densos e largos desse animal também se prestavam para variados propósitos. A larga escápula servia como pá para mexer a farinha no tacho quando estava sendo torrada nos grandes fornos. Já pedaços de costela eram cortados para fazer amuletos (puçanga), adornos e a gaponga, que é um pedaço de osso ou semente dura amarrado com fio longo a uma pequena vara, usada para bater na superfície da água, simulando o som de uma semente ou fruto caindo para atrair o peixe comedor de frutos na pesca do tambaqui (Colossoma macropomum).
Estudos etnológicos desenvolvidos no lago Amanã (rio Japurá) por Calvimontes (2009), revelaram que as populações locais não acreditam que o peixe-boi poderia acabar porque “além de ser um recurso dado por Deus, vem sendo caçado há muito tempo e mesmo assim ainda continua existindo” .
O principal motivo da caça ao peixe-boi foi, inicialmente, por sua carne e gordura e, posteriormente, pelo couro. Sua carne é dita ser muito saborosa e bastante apreciada pelos ribeirinhos amazônicos. Segundo relatos, ela lembra a de porco. Devido ao acúmulo de grande quantidade de gordura entre as camadas musculares e à baixa concentração da proteína mioglobina nos músculos, a carne do peixe-boi é mais clara e rosada, com colorações variando em diferentes partes do corpo. Isso faz com que muitos ribeirinhos distingam três tipos de carne: uma vermelha como a do boi, uma rosada como a do porco e uma branca como a do peixe. O produto mais popular, no entanto, é a mixira, resultado do cozimento da carne na sua própria gordura. A mixira é de fácil armazenamento e, acondicionada em potes ou latas, pode durar vários meses sem refrigeração, consistindo em uma fonte de proteína e gordura ao longo dos meses.
Sua exploração indiscriminada ao longo de séculos reduziu drasticamente as populações naturais, levando a espécie ao estado crítico de conservação. Ainda hoje, o peixe-boi é caçado para fins de subsistência, mas, também, existe um mercado ilegal da sua carne in natura e de mixira. Dados não publicados do Laboratório de Mamíferos Aquáticos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) revelam que em pleno século XXI ainda é comum encontrar carne de peixe-boi e de outras caças em mercados populares e feiras de Manaus, Manacapuru, Coari, Tefé e de outras cidades ao longo da calha do rio Amazonas.
No Brasil, esforços de conscientização parecem ter tido resultado na diminuição da caça em várias áreas da região amazônica, enquanto observações em outros países amazônicos, como por exemplo na Colômbia, indicam uma continuada pressão de caça. No Peru, a caça de subsistência parece ter eliminado o peixe-boi da região de Lagartococha há mais de duas décadas. Dados de outras regiões sugerem que as populações estão, no melhor dos casos, estáveis, mas outras observações sugerem um processo de declínio. Resultados de pesquisas moleculares desenvolvidos por Cantanhede e colaboradores (2005) indicaram que se a espécie passou por um processo de redução populacional com efeito gargalo, vem mostrando recuperação atualmente. Essa evidencia coincide com a implementação da Lei n° 5.197/1967, que passou a proteger essa espécie, proibindo a sua caça e comercialização. Desde então, a espécie tem permanecido com relativa baixa exploração. Dados resumidos pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) em 2014 sugerem, entretanto, uma grande variação de tendências nos diferentes países e regiões onde a espécie ocorre, mas apontam que existe uma alta vulnerabilidade e uma tendência geral de declínio. Assim, a proteção dessa espécie amazônica deve ser continuada e as populações monitoradas de forma a garantirmos a sua existência nos rios da região.
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