Por Suzana Padua
Mestra em educação ambiental e doutora em desenvolvimento sustentável. Co-fundadora e presidente do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas e da Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade (Escas)
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Quando cheguei no oeste paulista acompanhando o Claudio Padua, meu marido, resolvi trabalhar com educação ambiental, mas sem muito saber como começar. Assim, a pequena equipe que aderiu no início e eu passamos um questionário a moradores de Teodoro Sampaio, no Pontal do Paranapanema, que deflagrou uma realidade inesperada. Mais de 90% dos mais de 500 entrevistados matariam as cobras se as encontrassem, inclusive guardas-parques. Esse fato nos levou a uma reflexão profunda. O que fazer? Fingir que nada estava acontecendo não parecia correto. Afinal, a razão de estarmos na região era tentar salvar o mico-leão preto, espécie na época classificada como uma das dez mais ameaçadas do mundo pela IUCN (International Union for Conservation of Nature). E, se as deixássemos a mercê do gosto de quem as encontrassem, o destino delas poderia ser semelhante ao dos micos, que quase desapareceram da natureza.
Foi aí que pensamos em ter cobras vivas em nosso recém-inaugurado programa de educação ambiental, que já contava com visitação escolar em trilhas que havíamos instalado no Parque Estadual do Morro do Diabo (PEMD), então sob gestão do Instituto Florestal de São Paulo. Porém, sinceramente, a ideia não vinha fácil, pois, pessoalmente, eu nunca havia tido contato com cobras e nós, equipe de educação ambiental, precisávamos demonstrar familiaridade e tranquilidade ao lidar com essas criaturas.
O então diretor do parque, Dr. Marco Garrido, morava em Assis (SP) e vinha constantemente acompanhar o andamento de tudo o que se passava. Foi ele quem nos deu a solução, quando nos apresentou a um senhor chamado Brizola, que trabalhava no Departamento de Estradas de Rodagem (DER) e era um autodidata em cobras e outras espécies que em geral causam medo, como aranhas-caranguejeiras. Brizola encontrava esses animais em seu ofício junto ao DER e as distribuía ao Butantã e outras organizações de pesquisa. Fomos acolhidos de maneira calorosa, pois creio que para ele era um sonho encontrar um grupo de jovens (eu nem tanto) interessado em educar para proteger as espécies que tanto amava. Sem dúvida, Brizola foi chave para que pudéssemos aprender sobre o valor das cobras no meio ambiente e como manuseá-las adequadamente. Incansável em dar quantas palestras solicitávamos, mostrava generosidade em nos fornecer dicas para todas as dúvidas que tínhamos e que eram muitas. E mais, nos ofereceu três cobras para serem apresentadas aos visitantes.
Brizola começou por nos ensinar como manter as cobras em uma caixa de madeira com tampa de vidro e aberturas próprias que mandamos fazer especialmente para as novas integrantes do programa. Depois, nos orientou em como não as estressar demais. Assim, cada uma “trabalhava” um dia e descansava dois. E como não sabíamos alimentá-las, fato que acontece apenas uma vez a cada mês ou mais, devolvíamos as cobras ao Brizola, que as entregava de volta após serem devidamente supridas de pequenos roedores. Definitivamente, não estávamos prontas para tal incumbência!
O esquema durou uns dois anos e foi um enorme sucesso! As crianças já sabiam que teriam a chance de tocar ou segurar a Lili, nome que demos a elas, pois uns alunos contavam aos outros. Faziam muitas perguntas sobre como viviam, onde e o que precisavam para sobreviver. Já os professores, em sua maioria, ficavam nitidamente amedrontados, sem coragem de se aproximar da Lili. Nesses casos, cabia a nós, educadores, chegar com a cobra que estava de plantão naquele dia, em nossas mãos (em geral com a cabeça dela mais longe para não amedrontar) e oferecer a chance de passarem as mãos em sua pele macia e nada grudenta, como a maioria acreditava ser. Ao terem a coragem de tocá-las, muitos diziam que iriam contar em casa o que acabava de acontecer porque ninguém acreditaria, nem eles mesmos que estavam realizando tamanha proeza. Essas descobertas de amabilidade possível, juntamente com informações que passávamos sobre a importância do equilíbrio existente nas florestas e como cada ser tem um papel específico nessa teia de vida, foi levando as pessoas a compreenderem que as cobras, as aranhas e outros animais considerados menos “lindos” e “simpáticos” do que os micos, por exemplo, precisam coexistir de forma harmônica para garantir a integridade das matas.
Dentre os materiais que preparávamos, havia fotos, pegadinhas com informações verdadeiras ou falsas a serem identificadas, explicações sobre o que são cobras venenosas e perigosas e quais não oferecem perigo no manuseio, mas sempre enfatizando que não deveriam ser pegas sem a presença de um especialista. As expressões artísticas também foram muito utilizadas, pois arte abre canais de sensibilização e afeto, características importantes para se transmutar preconceitos e imagens negativas em positivas.
Não é fácil desmistificar um animal como a cobra, presente em tantas religiões e culturas como vilãs, mesmo que em muitos casos sejam símbolos de conhecimento ou fertilidade. A imagem temerosa das cobras é ancestral e sua desconstrução precisa acontecer para que tenham chance de sobrevivência. Desde a Antiguidade até a época atual, há uma presença forte de serpentes no imaginário popular, que vem de Adão e Eva, no cristianismo, símbolo do pecado, mas também do conhecimento. Já a naja no Egito, era a deusa do fogo e dama dos céus e dela dependia a fertilidade e a produtividade dos solos. Há sempre um misto de aspectos bons e cruciais à vida e outros aterrorizantes ligados às cobras e serpentes. A vida eterna está presente na figura do Ouroboros, serpente que come o próprio rabo, cuja imagem intriga pesquisadores há séculos por estar presente em diversas partes do mundo, em culturas distintas. Em todo o oriente, as cobras são figuras preponderantes, sendo para o bem ou para o mal. Pois que em nosso caso seja para o bem: para a conservação delas e da natureza como um todo.
O que a Lili nos ensinou?
O processo de desmistificação foi crucial para uma mudança de imagem. Quando fiz a pesquisa para meu doutorado, entrevistei muitas pessoas da região de diferentes segmentos e as perguntas cobriam diversos assuntos, mas com impressões de fatos que haviam acontecido quase vinte anos antes. Para meu espanto, muitas se recordavam da Lili e de como aquela experiência havia marcado suas vidas.
Uma entrevista em especial chamou minha atenção. Um guarda-parque afirmou que nunca mais os guardas do Parque Estadual Morro do Diabo haviam matado cobras, mesmo tendo sido prática comum antes das atividades com a Lili. Só esse relato já me trouxe a certeza de que havia valido a pena todo o trabalho, que na verdade foi divertido e prazeroso, que tivemos com a Lili e suas companheiras.
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