Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Em meu último artigo publicado aqui no Fauna News, abordamos o tucuxi (Sotalia fluviatilis), golfinho tipicamente marinho que vive nos rios da Amazônia. Fizemos uma rápida apresentação da sua biologia pouco conhecida e listamos algumas das principais ameaças que o afetam. Também indicamos que esse pequeno golfinho era avaliado no Brasil como espécie “quase ameaçada” (NT) e, até então, pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), como espécie de “dados insuficientes” (DD). Nos dois casos, essas classificações não significam falta de ameaças, mas que as informações disponíveis não são suficientes para uma avaliação adequada do status de conservação da espécie.
Semana passada, no entanto, enquanto eu, confinada, me recuperava da Covid-19, a IUCN publicou a última revisão para a espécie Sotalia fluviatilis que vinha sendo discutida há pelo menos dois anos, alterando seu status de conservação de DD para EN (“ameaçada” ou “em perigo”). O tucuxi entrou então para a mesma categoria de conservação do boto-vermelho (Inia geoffrensis) e de outras espécies de pequenos cetáceos de rio e costeiros. O que motivou a reclassificação dessa espécie considerada abundante e amplamente distribuída nos rios da bacia Amazônica?
Antes de abordarmos as ameaças, é importante esclarecer como é feita a classificação das espécies pela IUCN e pelo ICMBio no Brasil, para que todos possam entender os diferentes níveis de conservação que uma espécie passa antes de ser considerada em perigo ou até mesmo extinta.
Sempre que sou convidada para falar sobre os mamíferos aquáticos da Amazônia e sobre o status de conservação desses animais, percebo que geralmente as pessoas desconhecem essa classificação, o que gera confusão e muitas interpretações.
As espécies inicialmente passam por uma triagem feita por grupos de especialistas para saber se são elegíveis ou não à avaliação. Quando avaliadas podem ser classificadas em quatro categorias: “não aplicável” (NA), “dados insuficientes” (DD), “menos preocupante” (LC) e “quase ameaçada” (NT). Essa última categoria indica que uma espécie não atingiu o critério de ameaça, mas está prestes a ser qualificada em uma categoria de perigo em um futuro próximo se as ameaças que estão agindo sobre ela ou população não forem eliminadas. O próximo nível é o das categorias de ameaça ou de perigo, ou seja, quando a espécie foi avaliada e foi verificado que está correndo alto risco de extinção na natureza. Esse nível envolve três categorias: “vulnerável” (VU), “ameaçada ou em perigo” (EN) e “criticamente ameaçada” ou “criticamente em perigo” (CR). Acima dessas categorias, a espécie pode ser considerada “regionalmente extinta” (RE), “extinta na natureza” (EW) e, finalmente, “extinta” (EX).
O diagrama abaixo, do Livro Vermelho da Fauna Ameaçada de Extinção (ICMBio, 2018), ilustra bem a hierarquia das categorias de avaliação das espécies.
Cada uma dessas categorias tem como base critérios muito objetivos e a aplicação desses critérios e categorias visa responder à seguinte questão: “qual a probabilidade de uma espécie tornar-se extinta em um futuro próximo, dado o conhecimento atual sobre sua distribuição, tendências populacionais e ameaças recentes, atuais ou projetadas?”.
A última classificação do tucuxi feita pela IUCN foi em 2012. Na época, os especialistas tinham bem mais informações sobre a biologia populacional e sobre os problemas que estavam afetando os botos-vermelhos do que sobre o tucuxi. Além disso, a partir da virada do milênio, com a matança em largas proporções e a perseguição direta do boto-vermelho para uso na pesca da piracatinga, bagre necrófago dos rios amazônicos, essa espécie de golfinho sofreu rápido declínio em várias áreas da sua distribuição, levando à redução drástica das populações em diferentes áreas da Amazônia. Em 2018, essa espécie, que já havia sido antes classificada como “vulnerável” (VU), passou para “dados insuficientes” (DD) e posteriormente tornou-se espécie “em perigo” (EN). O que ficou claro para todos nesse processo é que as mesmas ameaças que estavam afetando o boto-vermelho também atingiam o tucuxi.
Esses golfinhos (boto-vermelho e tucuxi) são espécies simpátricas e compartilham o mesmo habitat e, consequentemente, as mesmas ameaças. Entre elas, podemos citar a redução populacional provocada pela alta incidência de captura acidental em redes de pesca, a destruição dos ambientes aquáticos, seja por hidroelétricas ou por outros projetos de desenvolvimento, e pela contaminação dos corpos d’agua por diferentes poluentes, principalmente agrotóxicos, organoclorados, metais pesados e hidrocarbonetos.
Assim, voltando a nossa pergunta inicial, a inclusão do tucuxi como espécie “em perigo” é mais um grito de alerta para a sociedade e para os tomadores de decisão de que algo grave está ocorrendo com a nossa fauna aquática na Amazônia. Se nada for feito para frear a redução populacional e para promover a conservação desses golfinhos e da qualidade do ambiente fluvial, em um futuro não muito distante, essas espécies desaparecerão causando um desequilíbrio irreversível ao ecossistema aquático amazônico e tornando a humanidade mais pobre. Ambientalistas e pesquisadores alertam constantemente para a importância da preservação da Amazônia como um todo, mas, infelizmente, o discurso da conservação raramente se reflete em políticas públicas.
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