Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
aquaticos@faunanews.com.br
Neste novo artigo sobre os mamíferos aquáticos da Amazônia, comentarei sobre o boto-tucuxi ou o tucuxi, como é conhecido na Amazônia brasileira e como vamos denominá-lo ao longo do texto. Diferentemente do boto-vermelho (Inia spp), cujos congêneres ocorrem exclusivamente em água doce, o tucuxi pertence a uma família tipicamente marinha, sendo a única exceção vivendo em água doce.
Membro da Família Delphinidae, Sotalia fluviatilis (seu nome científico) ocorre exclusivamente no ambiente fluvial ao longo dos principais rios da bacia Amazônica no Brasil, na Colômbia, no Equador e Peru. O tucuxi não ocorre em rios caudalosos com corredeiras e cachoeiras, nos rios da bacia do Orinoco, na Colômbia e Venezuela, nem acima das cachoeiras do rio Madeira. tampouco nos rios da Bolívia. Várias reportagens, artigos populares e até mesmo resumos de reuniões científicas mencionam a ocorrência do tucuxi no rio Araguaia. No entanto, essa informação não procede, já que está confirmado que esse golfinho não ocorre nesse rio, nem acima da Usina Hidrelétrica de Tucuruí. O único golfinho com distribuição nos rios da bacia Tocantins-Araguaia é o boto-do-Araguaia (Inia araguaiensis), cetáceo restrito ao território brasileiro e descrito pela primeira vez em 2014. Sua aceitação como nova espécie, no entanto, ainda não é consenso na comunidade científica.
Também existem controvérsias sobre a existência de sobreposição e/ou simpatria (ocorrência em uma mesma área) do tucuxi com a espécie Sotalia guianensis (boto-cinza) no estuário do rio Amazonas. Essa espécie, do mesmo gênero (Sotalia), é essencialmente marinha, ocorre ao longo da costa leste da América do Sul, desde Florianópolis no Brasil até Honduras, na América Central. Esses dois golfinhos são muito similares na sua forma e coloração, mas Sotalia guianensis é bem maior, alcançando o comprimento máximo de cerca de 2,20 metros e 80 quilos de massa corporal.
A entrada do tucuxi nos rios da Amazônia deu-se via Atlântico, cerca de 5 a 2,5 milhões de anos atrás, durante o período geológico conhecido como Plioceno. Ou seja, podemos supor que os eventos geológicos ocorridos há milhões de anos criaram condições para que esse golfinho marinho entrasse e se adaptasse com sucesso no ambiente fluvial Amazônico. Uma dessas adaptações, e a mais evidente, foi a redução corporal bastante acentuada. Os adultos atingem o comprimento máximo de 1, 52 metro e 55 quilos, sendo considerado um dos menores golfinhos do mundo.
Essencialmente piscívoro, o tucuxi alimenta-se principalmente de peixes pelágicos de mais de 11 famílias e de mais de 30 espécies, sendo os curimatídeos e scianideos os mais comuns na sua dieta. Geralmente consomem peixes de até 25 centímetros de comprimento.
O comportamento e a biologia reprodutiva do tucuxi ainda não foram totalmente estudados. Não apresenta dimorfismo sexual e para a identificação do sexo é preciso examinar a região genital. Estudos preliminares sugerem que os machos atingem a maturidade sexual a partir de 1,40 metros e as fêmeas entre 1,32 e 1,37 metro, com a ovulação ocorrendo sempre no ovário esquerdo. A reprodução parece ser sazonal e sincronizada com o ciclo anual dos rios. Filhotes nascem com 75-80 centímetros de comprimento, depois de uma gestação de cerca de 11 meses, quando nasce apenas um, principalmente no período de águas baixas, quando a oferta de alimento é maior. A duração da lactação, período no qual o filhote permanece com a mãe, e o intervalo entre nascimentos não são conhecidos, mas provavelmente são similares aos de outros golfinhos da família.
Todos os golfinhos que vivem em ambientes costeiros e fluviais estão em situação de vulnerabilidade devido à intensa interação e proximidade com as atividades humanas. Com o tucuxi não é diferente. Esse golfinho está listado no Livro Vermelho da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) como espécie de “Dados Insuficientes” (DD). Essa classificação não significa que a espécie não esteja ameaçada, mas que não existem informações suficientes para a sua avaliação. No Brasil, está listada como espécie “Quase Ameaçada” (NT). A falta de informação é preocupante, já que esse golfinho compartilha muitas das ameaças que afetam o boto-vermelho, recentemente classificado como espécie “Ameaçada”.
Assim, estudos de tendência e dinâmica populacional são urgentes. A principal ameaça ao tucuxi é a captura acidental em redes de pesca, tanto de espera quanto de arrasto e de deriva. Não existem registros de consumo humano da carne e não é normalmente capturado para ser usado como isca na pesca da piracatinga. O uso acontece principalmente quando capturado acidentalmente ou encontrado morto na rede. Em geral, os pescadores protegem o tucuxi e costumam soltá-lo quando encontrado ainda vivo. A poluição dos rios por compostos organoclorados (DDT, PCB, HCH, HCB, Mirex), organobrominatos (PBDE) e metais pesados, assim como a destruição dos ambientes aquáticos são outras ameaças a esses golfinhos e o grau de letalidade depende da região onde ocorrem.
Estudos recentes na área da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e entorno mostraram que a população desses golfinhos vem sendo reduzida a uma taxa de 50% a cada nove anos. Os motivos dessa drástica redução em uma área com alto grau de proteção e de conscientização das populações que vivem naquela região ainda não estão bem esclarecidos, mas em face às diferentes ameaças que afetam a espécie, e sua aparente fragilidade, é disparado o alarme para a necessidade urgente de avaliação e monitoramento em outras áreas de sua distribuição que não gozam da mesma visibilidade.
Assim como o boto-vermelho e o peixe-boi-da-Amazônia (Trichechus inunguis) , o tucuxi também é uma espécie endêmica dos rios da Amazônia e tem um papel ecológico importante no ecossistema aquático da região. Sua redução e ou ameaça de extinção precisa ser evitada.
Essa é uma missão de todos nós: proteger a Amazônia e a sua fauna.
– Leia outros artigos da coluna AQUÁTICOS
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)