Formado em Administração e pós-graduado em Gestão Ambiental. É instrutor de Fiscalização Ambiental da Polícia Rodoviária Federal e membro do Grupo de Enfrentamento aos Crimes Ambientais da corporação
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Bambi é uma elefanta de 58 anos que passou sua vida entre um circo e um zoológico. No último dia 24 de setembro, depois de concluídos os trâmites judiciais e cumpridas todas as formalidades relativas à sua transferência, ela entrou na caixa de transporte e foi levada para o Santuário de Elefantes Brasil, no Mato Grosso, onde vai passar o restante dos seus dias como um elefante deve viver: cercado de natureza e de cuidados.
Uma operação para transportar um animal do porte de um elefante por mais de mil e quinhentos quilômetros de rodovias federais e estaduais e por estradas, até a chegada ao Santuário de Elefantes Brasil (SEB), em Rio da Casca, município de Chapada dos Guimarães, envolve dezenas de pessoas e de organizações privadas e governamentais. Para atingir o objetivo da empreitada, o trabalho integrado e a participação de equipes comprometidas com o sucesso da missão são essenciais.
O Santuário
“O Santuário de Elefantes Brasil é uma nova e empolgante organização sem fins lucrativos que vai ajudar a transformar as vidas e o futuro dos elefantes cativos na América do Sul. Desde janeiro de 2010, a ElephantVoices, junto com defensores interessados na causa no Brasil, vêm trabalhando para apoiar os esforços legislativos para proibir a antiquada prática de utilizar elefantes em espetáculos no Brasil, enquanto exploram o potencial para o desenvolvimento de um santuário de elefantes no país. Em 2012, Scott e Kat Blais se uniram a esses esforços, trazendo com eles o conhecimento e a experiência necessários para ajudar a transformar a teoria em realidade. Com a criação do Global Sanctuary for Elephants (Santuário Global para Elefantes), nossa coalizão de especialistas e cidadãos interessados está pronta para dar o próximo – e fundamental – passo em direção ao futuro.
Cinco países da América do Sul já aprovaram leis que proíbem o uso de animais em espetáculos, e o Brasil é o próximo da fila, à espera de uma alternativa que garanta aos elefantes deslocados um futuro seguro, compassivo e saudável. A maioria das pessoas concorda com os proativos esforços legislativos, mas poucos têm uma solução para o que acontecerá com os elefantes, uma vez que não tenham mais utilidade no circo. Zoológicos não são uma opção viável – mesmo os “bons” zoológicos –, pois as limitações de espaço e capacidade impactam totalmente a qualidade de vida dos elefantes. Na verdade, existem vários elefantes que já residem em jardins zoológicos da América do Sul e que estão necessitando desesperadamente de uma alternativa mais saudável. O Santuário de Elefantes Brasil é essa alternativa, através do desenvolvimento de nosso grande e bem preservado habitat natural, rodeado de cuidadores compassivos e com uma abordagem holística da saúde e do bem-estar dos elefantes. O Santuário de Elefantes Brasil vai oferecer a oportunidade de uma vida na natureza que todos os elefantes cativos merecem.
Infelizmente, a realidade dos elefantes em cativeiro sempre foi horrível. Começando na infância, muitos com apenas dois ou três anos de idade foram roubados de suas famílias na natureza, ficando então isolados, sofrendo abusos e, em alguns casos, passando fome e sendo torturados antes de serem embalados em caixas de madeira e enviados através dos mares para passar as próximas décadas viajando com circos ou confinados em recintos de zoológicos, frequentemente, numa existência solitária. A vida de um elefante escravizado em cativeiro para entretenimento humano causa danos dramáticos à sua saúde física, psicológica e emocional. Frequentemente, esses elefantes desenvolvem comportamentos neuróticos, sacudindo e balançando a cabeça compassadamente, experimentando uma série de padrões repetitivos, com o olhar fixo e hipnótico em algo que não podemos ver, perdidos dentro de si mesmos, fazendo o que eles têm que fazer, a fim de lidar com a vida que lhes foi entregue.
Se esses indivíduos tivessem sido deixados em paz e lhes fosse permitido que crescessem com as suas próprias famílias e migrado ao longo de milhares de quilômetros quadrados, criando sua própria prole, suas vidas talvez não tivessem sido fáceis, já que enfrentam crescentes ameaças devido à ganância humana, mas eles, ao menos, teriam suas vidas ditadas pela natureza. Pelo lado positivo, sabemos que, com base na experiência da Performing Animal Welfare Society e do The Elephant Sanctuary in Tennessee, dois santuários de elefantes de renome mundial, podemos fazer uma profunda diferença na vida dos elefantes cativos na América do Sul. O Santuário de Elefantes Brasil irá proporcionar um ambiente nutritivo, grande, onde os elefantes poderão socializar com outros de sua própria espécie, migrando e pastando ao longo de centenas de hectares, nadando e se refrescando em lagoas. Podemos oferecer a eles um lar onde possam aprender a confiar em pessoas ao seu redor, permitindo-lhes uma sensação de paz que abra uma oportunidade para curar feridas e cicatrizes emocionais de décadas atrás.
Desenvolver um santuário de elefantes requer amplo conhecimento da vida natural dos elefantes, sobre como eles vivem se deixados sozinhos na natureza, uma compreensão de suas estruturas sociais, da dieta adequada, dos métodos de comunicação e uma profunda compreensão do significado dos seus comportamentos naturais, suas posturas e vocalizações. Mas também temos que entender o que eles enfrentaram em cativeiro, como a forte dominação humana, a punição física, o impacto a longo prazo de uma dieta inadequada e a falta de experiência social, o isolamento e o confinamento extremos. Mais importante, temos que compreender a psicologia da cura e o vasto espectro de respostas individuais ao estresse e ao trauma. Alguns podem se recuperar rapidamente, outros podem ter lembranças de sofrimentos passados que podem assombrá-los para o resto de suas vidas. Todos os aspectos da natureza dos elefantes e o impacto que o cativeiro teve em cada um deles devem ser levados em consideração na escolha das terras, na construção das cercas, no desenvolvimento do protocolo operacional, no projeto das instalações e, principalmente, nos cuidados quando se estiver trabalhando com cada indivíduo.
O Global Sanctuary for Elephants reuniu dois especialistas muito experientes, a Dra. Joyce Poole, reconhecida internacionalmente por seus estudos com elefantes selvagens na África, e Scott Blais, cofundador do The Elephant Sanctuary, uma das duas organizações pioneiras nos cuidados progressistas com elefantes. Com o vasto conhecimento de Joyce sobre o comportamento natural desses animais e o profundo conhecimento de Scott em relação aos cuidados e à recuperação de elefantes em cativeiro, o Santuário de Elefantes Brasil está preparado para ter um impacto profundo na vida de elefantes cativos no Brasil e em toda a América do Sul.” – texto do site do Santuário de Elefantes Brasil
As viagens até o Santuário
Num país de dimensões continentais como o Brasil, onde o modal rodoviário é o mais utilizado, com fluxos de veículos na casa dos milhões e tráfego intenso, quer seja nas vias rurais ou nos centros urbanos, há toda uma série de riscos que envolvem o transporte de cargas.
O que dizer então de uma carga, que na verdade é um passageiro?
O traslado de elefantes entre os locais onde se encontram e o Santuário de Elefantes Brasil, no Mato Grosso, requer ações logísticas que mobilizam pessoas das mais diversas áreas. Apoiadores, veterinários, equipes de filmagem, segurança; todos trabalhando para proporcionar bem-estar a criaturas que já passaram em suas vidas por uma série de privações e que requerem (e merecem) uma série de cuidados para que venham a ter finais de vida com a dignidade e a liberdade que um dia lhes foi retirada.
Seja do interior de Minas Gerais, de São Paulo, venha do Nordeste do Brasil ou mesmo de outros países, como Argentina e Chile (deste último contou inclusive com uma parte do transporte feito por meio aéreo), a parte mais importante é acompanhar o desembarque do elefante naquele que virá a ser seu novo e definitivo lar, onde ele vai conviver com outros indivíduos após um período de adaptação.
A participação da Polícia Rodoviária Federal
Desde o início da ocupação do Santuário de Elefantes Brasil, em 2016, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) tem colaborado para a segurança do transporte dos elefantes para o SEB.
No mês de outubro daquele ano, uma equipe da PRF realizou a escolta de Maia e Guida, duas elefantas resgatadas do Circo Portugal e que viviam, em caráter provisório (e precário), num sítio no município de Paraguaçu (MG), distante mais de 1.500 quilômetros de Rio da Casca, em Chapada dos Guimarães. A presença da PRF proporcionou ao comboio a segurança necessária para que as duas chegassem sãs e salvas ao novo lar.
Naquela missão, a PRF enviou uma equipe dedicada que acompanhou os veículos por todo o trajeto e encerrou a missão após três dias de viagem, com muitos quilômetros percorridos em pistas simples e com todos os riscos derivados de qualquer transporte rodoviário.
Com o êxito da missão, a PRF seguiu prestando apoio sempre que solicitado pelo SEB, sendo em algumas ocasiões com equipe dedicada ou, em outras situações, realizando a escolta com as equipes em serviço nos trechos de rodovias federais.
Assim, a PRF auxiliou no traslado também de Lady, Ramba e Rana, e segue na proposta de valorizar uma iniciativa tão nobre quanto a de proteção e preservação ambiental, atuando para garantir a segurança dos comboios pelos milhares de quilômetros de caminhos para a liberdade que espera todos os elefantes a serem residentes no Santuário.
Missão cumprida
A mais nova moradora do Santuário, a elefanta Bambi foi resgatada de um circo e vivia em um espaço que dividia com Maison, outra elefanta, no zoológico de Ribeirão Preto (SP). No final de setembro de 2020, ela fez a viagem de mais de 1.200 quilômetros até o Santuário.
Embora seu comportamento desconfiado tivesse feito com que Bambi, em princípio, não apresentasse muita disposição para embarcar na caixa de transporte, após exaustivas tentativas de convencê-la (e muitas vibrações positivas de todos os envolvidos), ela finalmente entrou na caixa e a viagem do comboio com destino à Chapada dos Guimarães teve início.
Após três dias em que Scott, presidente do SEB, e sua equipe procuraram cercá-la de cuidados e mimos (frutas e até mesmo Gatorade), a viagem foi finalizada com a chegada ao Santuário, onde tudo estava preparado para recebê-la. Ao desembarcar da caixa de transporte em Rio da Casca, teve início a fase de adaptação e convívio com suas irmãs que já vivem no Santuário.
Mais uma missão cumprida com todo cuidado e zelo. Enquanto Bambi se adapta à nova vida, as equipes envolvidas buscam algum descanso até que mais um morador possa ser levado para o Santuário de Elefantes Brasil, onde poderá usufruir da “vida de bicho” que nunca deveria ter-lhe sido retirada.
Imagem à sociedade
Durante a viagem, observamos “algo a mais” em todos os lugares por onde passamos, nos motoristas, nas pessoas que viram a Bambi e no comboio de escolta. Era uma surpresa positiva ao avistarem uma ONG, uma empresa privada, e o governo federal, representado pela PRF, trabalhando juntos.
A união dessas instituições, que na prática foi união de milhares de pessoas, foi responsável por dar um final de vida digna a um animal que foi explorado e aprisionado por toda sua vida. Acho que a elefanta Bambi, no Santuário, é algo que fez com que todas as pessoas que puderam contribuir de alguma forma se sentissem um pouco mais humanas, um pouco melhores para sua consciência existencial.
Nós, policiais rodoviários federais que participamos dessa missão, só podemos agradecer à PRF pela oportunidade; agradecer ao Santuário de Elefantes Brasil por acreditar no nosso trabalho e à todas as pessoas que ajudaram de alguma forma. Obrigado também a Bambi, que colocou na nossa existência o sentimento de ter feito algo que vale a pena sob qualquer ângulo do prisma.
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